- Observations d’un sourd et muet sur un cours élémentaire d’éducation des sourds-muets. (Paris, Éditions du Fox, Edição Fac-similar, 1779)
- Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets. (Paris: chez l’auteur, 1836)
- Notice sur la vie et les ouvrages d’Auguste Bébian. (Paris: J. Ledoyen, 1839)
- Les sourds-muets avant et depuis l’abbé de l’Épée. (Paris, J. Ledoyen, 1840)
- L’Abbé de L’Épée: sa vie, son apostolat, sex travaux, sa lutte et ses succés. (Paris, Michel Lévy Frères, 1852)
- L’Abbé Sicard...précis historique sur sa vie, ses travaux et ses succès… (Paris: Charles Dounoil, 1873)
Em 1992, a convite do GELES/Grupo de Estudos sobre Linguagem, Educação e Surdez, grupo coordenado pela pesquisadora Lucinda Ferreira Brito na Faculdade de Letras da UFRJ, a Babel Editora (que se transformou em 1993 em Editora Arara Azul) publicou o número 6 da sua REVISTA GELES.
O primeiro ensaio do volume, “Los banquetes de sordos mudos e el Nacimiento del movimiento sordo”, de autoria do pesquisador Bernard Mottez, muito me impressionou por dois motivos: trazia o conceito absolutamente novo de “povo surdo” ou “nação surda” (“los sordos forman un pueblo sin territorio") e demonstrava essa ideia através de fatos ocorridos no século XIX na Europa, com a existência desses banquetes surdos, entre outras evidências de uma organização política dos surdos.
No Brasil os surdos ainda não tinha a visibilidade que hoje apresentam. A assim chamada “Lei de Libras” é de 2002 (com o reconhecimento da Libras como língua dos surdos). Mas a minha convivência com surdos cariocas, depois brasileiros e depois de alguns outros países, foram me demonstrando que realmente esses grupos apresentam algumas condições culturais especiais.
O tempo foi passando, acabei me dedicando à editoração de traduções de textos do Português escrito para a Libras e, apenas em 2015, quando surgiu uma oportunidade de cursar um Pós Doutorado na França como pesquisadora associada ao PACC/PROGRAMA AVANÇADO DE CULTURA CONTEMPORÂNEA DA UFRJ é que o texto de Mottez voltou à minha mente com muita força. E o desejo de pesquisar o tema onde tudo aconteceu.
COMEÇANDO AS PESQUISAS
Como já disse em COMO SURGIU A IDEIA, meu primeiro contato com a hipótese de existir um POVO SURDO surgiu em 1992 com a leitura do artigo “Los banquetes de sordos mudos e el Nacimiento del movimiento sordo”, de Bernard Mottez. Esse sociólogo francês (1930- 2009) teve um papel muito importante não só como pesquisador da cultura surda mas também um papel político de apoio nas lutas pelos direitos dos surdos franceses.
A Revista Coup d OEil publicada entre 1997 e 1986 (por Mottez e Harry Markowicz) levou definitivamente a Língua de Sinais Francesa (cujo nome, anteriormente denominada gestos ou mímica, é atribuído a ele) a um status de língua natural.
Quando resolvi me aprofundar no tema Banquetes Surdos, tive a sorte de conhecer Andrea Benvenuto, uma pesquisadora uruguaia radicada na França, com pós-doutorado em Portugal (seu domínio do Português facilitou bastante nosso contato!), que trabalhou com o professor Mottez e desde 1997 já se dedicava ao Estudos Surdos.
Seu artigo “Les banquets des sourds-muets au XIX e siècle et la naissance du mouvement sourd” publicado na Revue des Livres número 10 (março-abril 2013), me levou a outra descoberta: além da organização verdadeiramente política que os surdos franceses protagonizaram, havia também o desejo de participar da construção das políticas públicas através da publicação das ATAS DOS BANQUETES SURDOS.
Convido a todos para a leitura desse excelente texto!
Em um artigo publicado em francês, originalmente na Revista La nouvelle revue de l'adaptation et de la scolarisation 2013/4 (N° 64) e em 2016 na Revista Moara, n°45, da UFPA, a professora Andrea Benvenuto e o professor Didier Séguillon discorrem sobre a organização social e política dos surdos franceses no século XIX.
Além dos “banquetes surdos” e do assim chamado “esporte silencioso", a comunidade os surdos franceses também investe na disseminação das informações através de uma imprensa própria, congressos, moradias compartilhadas e associações de diversos tipos.
Os artistas surdos (pintores e escultores em sua maioria) passam a ser valorizados e se investe bastante na rede de contatos com ouvintes importantes no cenário social e político como forma de se manterem em atividade e serem reconhecidos.
Mas é no esporte que os surdos passam a ter uma visibilidade maior. Confira nesse trecho do artigo em questão:
“Ao final do século XIX, os surdos ampliaram essa mobilização coletiva, praticando atividades esportivas e se tornaram, para além de simples participação de uma ginástica paramilitar, praticantes de esportes associativos, modernos e autogeridos (ULMANN, 1982). Nessa época, o ciclismo era a prática esportiva central na França (ARNAUD & CAMY, 1986) e os surdos se apropriaram dessa atividade, iniciando a prática da bicicleta no seio das associações esportivas dos ouvintes e depois nas sociedades surdas.
A exemplo do movimento esportivo dos ouvintes, o ciclismo passa a ser a essência da construção do movimento esportivo silencioso, o que nos é mostrado por elementos da história dessa prática esportiva. Por exemplo, a corrida de cem quilômetros do trajeto Epenay-Mézières, organizada pela União velocipédica de Epenay conta, pela primeira vez, com a participação de cinco jovens surdos e Henri Mercier20 é o primeiro colocado entre sessenta participantes surdos e ouvintes.
Em 1894, alguns surdos eram observados por curiosos nas estradas da Europa. De fato, Jaroslar Barta, um surdo tcheco, vindo da Alemanha e da Bélgica, passa por Paris antes de ir em direção da Espanha, da Itália e da Áustria. Nesse mesmo ano, outro surdo esportivo chamado Danner participa da corrida de 50 quilômetros no trajeto Choisy-le-RoiVersailles. São organizadas inúmeras corridas como a que foi feita no dia 23 de dezembro de 1894 entre ciclistas surdos e um carro atrelado, dia em que uma delegação de surdos parisienses iria a Versailles para uma cerimônia de homenagem diante da estátua do abade de l’Epée. Henri Mercier participou da corrida de 100 quilômetros em Epernay e chegou em quarto colocado, em 3 horas e 40 minutos.
Entretanto a prática desse esporte deixa de ser algo atrelado a iniciativas individuais e, em reunião, os surdos decidem criar o primeiro campeonato oficioso do ciclismo no dia 30 de junho de 1895, em Sy-le-Roi-Versailles. Trata-se de uma corrida de cinquenta quilômetros entre Paris e La Varenne-Chènnevières, reunindo doze concorrentes.
É Mercier, ele novamente é o primeiro colocado, com um percurso feito em uma hora e trinta e oito minutos, sem falar nas peripécias causadas pelos erros de sinalização, pela ausência de supervisores da corrida dentre outros. A presença de Henri Mercier não é um acaso e basta lembrar que ao final do século XIX, a bicicleta ainda é considerada objeto de “luxo”.
A bicicleta, objeto caro, torna-se dali em diante e rapidamente um objeto de consumo, mas ainda pouco presente entre os menos afortunados. É então natural que os surdos abastados viessem a ser os pioneiros do esporte silencioso. Desde o início do século XX, a relativa democratização da bicicleta abre possibilidades para a difusão dessa prática esportiva dirigida a toda a população francesa e particularmente à população surda.”
É interessante lembrarmos que, até hoje, os surdos não participam das Paraolimpíadas, preferindo organizar jogos exclusivos para pessoas surdas, as Surdolimpíadas. Os primeiros Jogos Internacionais Silenciosos (nome na época) aconteceu em 1924, em Paris. Entre os dias 1 a 15 de maio de 2022 acontecerão as 24ª Surdolimpíadas de Verão, em Caxias do Sul/RS.
Confira o artigo completo:
ABÉE L´ÉPÉE: O "PAI" DOS SURDOS
Para começar a entender como os surdos franceses começaram a se organizar politicamente no século XIX, muito antes de se pensar em direitos das minorias, não podemos deixar de lado a figura de Charles-Michel de L´Épée.
Já sabemos que os famosos BANQUETES SURDOS tiveram início em 1834 em função da comemoração do aniversário do padre, falecido em 1789.
A fama obtida por esse educador não foi sem mérito, já que sua luta incansável pela defesa da língua de sinais (na época conhecida como mímica) utilizada pelos surdos, deu aos surdos por ele educados uma condição nunca antes alcançada.
“Em 1760, na França, o abade l’Epée (Charles Michel de l’Epée: 1712 -1789) iniciou o trabalho de instrução formal com duas surdas a partir da Língua de Sinais que se falava pelas ruas de Paris utilizando para esse fim além da Língua de Sinais, a datilologia (alfabeto manual) e sinais criados artificialmente, obtendo grande êxito, sendo que a partir dessa época a metodologia por ele desenvolvida tornou-se conhecida e respeitada, assumida pelo então Instituto de Surdos e Mudos (atual Instituto Nacional de Jovens Surdos) em Paris como o caminho correto para a educação dos seus alunos.”[1]
A imagem que ilustra este Blog trata-se de uma obra do artista surdo Auguste Colas (1814-1915). “Menu para um banquete de aniversário do nascimento do Abée de L´Épée” , de 1898.
[1] RAMOS, Clélia Regina. "Libras como Segunda Língua para Ouvintes: UMA PROPOSTA DE INCLUSÃO" IN REVISTA VIRTUAL DE CULTURA SURDA E DIVERSIDADE (EDITORA ARARA AZUL) , 4ª ed. Junho 2009.
O objetivo dessa pesquisa é apresentar a construção da ideia de NAÇÃO SURDA a partir de textos escritos pelos surdos. Mas, para quem não conhece a história da educação de surdos, vamos apresentar alguns fatos importantes que possibilitaram a organização social e política de grupos de surdos em momentos específicos.
A figura do educador ouvinte, Abée L´Epée faz parte do imaginário das comunidades surdas em todos os cantos do planeta, mas, claro, para os surdos franceses sua história se confunde com a deles.
Nesse vídeo (com tradução para Língua Francesa de Sinais, falado em Francês e com legenda em Francês, com possibilidade de tradução automática para o Português na Configurações), o padre é apresentado como o fundador da primeira escola para surdos em 1760, onde ele desenvolveu o método que lhe deu a fama: utilizando sinais criados por ele (sinais “metódicos”) intercalados com a língua de sinais falada pelos surdos de Paris e a língua escrita.
As ideias da Revolução Francesa que estava em vias de acontecer, com valorização dos direitos de todos os cidadãos, da liberdade de expressão, foram extremamente favoráveis para o sucesso de sua empreitada. E os anos que se seguiram viram muitos alunos surdos se tornarem eles mesmos professores daquela instituição.
PIERRE DESLOGES, O PRIMEIRO AUTOR SURDO PUBLICADO
Pierre Desloges nasce em 1747 em Grand-Pressigny, cidade a pouco menos de 300 quilômetros de Paris. Ensurdecido pela varíola aos 7 anos, seus lábios ficaram tão machucados que ele só conseguia fechá-los com muito esforço ou com a ajuda das mãos, tendo perdido quase todos os dentes. Sua fala se tornou praticamente incompreensível. Ele emudeceu.
Pela descrição de sua sensação auditiva, Desloges tornou-se um surdo severo: “Em primeiro lugar, consigo ouvir a mais de quinze ou vinte passos de distância todos os ruídos um pouco altos, não através dos ouvidos, porque estão completamente bloqueados; mas por uma sensação simples: quando estou em meu quarto, posso distinguir o rolar de uma carruagem do toque de um tambor. (p.11) “Consigo distinguir facilmente o som do violino do da flauta; mas não ouvirei absolutamente nada se não tiver minhas mãos sobre ele." (p.12)
Em 1768, com 21 anos, ele e sua família se mudam para Paris, onde passa a exercer a função de encadernador. Desde sua doença, Desloges não mais frequentou a escola, mas sabia ler e escrever um pouco. Oito anos após sua chegada na capital, em 1776, ele conhece um surdo italiano analfabeto mas falante da Língua de Sinais praticada nas ruas de Paris. Naquela época Desloges utilizava alguns gestos espontâneos mas sem a estrutura gramatical de uma língua. Esse encontro foi uma mudança significativa para aquele homem de inteligência afiada mas que se sentia tolhido pela ausência de possibilidade de comunicação. O impacto que o contato de Desloges com a Língua de Sinais deve ter sido realmente muito forte, pois em apenas três anos, não só ele passa a dominar essa língua, quanto percebe sua importância para a educação dos surdos, e decide participar do processo de discussão teórica que estava sendo travado na época.
Desloges publica seu livro Observations d’un sourd et muet sur un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets em 1779, defendendo o uso da Língua de Sinais na educação de surdos em resposta ao texto do professor ouvinte Abbé Deschamps, Un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets, também publicado em 1779 no qual Deschamps propõe a educação oralista dos surdos através da leitura labial. Desloges contou com a revisão do linguista Abbé Alexis Copineau, que o ajudou com a correção ortográfica e de estilo, sendo dele, também um pequeno texto de apresentação no início do texto (AVERTISSEMENT).
Na realidade, a questão da possibilidade de um surdo oralizar estava no cerne das propostas do professor Deschamps e de tantos outros professores ao longo da história da educação de surdos. O que podemos perceber no texto de Desloges é a importância que ele dá à Língua de Sinais enquanto língua “de verdade” e não uma junção de gestos com significados atrelados (ou não) à língua oral, o que, também, é inovador pois só a partir dos anos de 1960, nos Estados Unidos, com as pesquisas do linguista William Stokoe, é que as línguas de sinais começaram a ser reconhecidas como línguas em sua plenitude.
Mas ele também se coloca efetivamente no que chamamos “lugar de fala” proposto pelo movimento de minorias que se iniciou no final do século XX, “Nada sobre nós sem nós”
Outro fato importante é que Desloges nunca foi professor de surdos, nem sequer teve formação profissional nessa área. Não foi aluno de Abbé L´Épée. O que ele apresenta em seu texto é um manifesto político em defesa dos direitos linguísticos dos surdos, claro que defendendo a linha de trabalho desenvolvida por L 'Épée mas com o ponto de vista de uma pessoa surda.
“Sentindo-me como um francês vendo sua língua criticada por um alemão, que soubesse no máximo algumas palavras dela, me senti obrigado a vingar a minha pelas falsas imputações pelas quais este autor é responsável, e ao mesmo tempo justificar o método de Abbé L´Épée, inteiramente baseado no uso de sinais. Também tento dar uma ideia mais precisa do que normalmente se tem, da língua de meus companheiros que são surdos e mudos de nascença, que não sabem ler nem escrever e que nunca receberam outras lições além das do bom senso ou por contato com seus companheiros. Em duas palavras, esse é o propósito do livrinho que vamos ler.” (p. 9)
Nesse parágrafo inicial de apresentação do trabalho, Desloges denomina os surdos como “mes compagnons/meus companheiros” duas vezes. Esse termo será repetido também nas páginas 12, 33 e 34. E, mais importante, se apropria da língua falada por esses companheiros e se sente na obrigação de defendê-la. Já temos aí um dos elementos constitutivos do conceito de nação: fazer parte de um grupo de pessoas que compartilham uma língua em comum.
Um pouco adiante em seu texto, Desloges fala explicitamente sobre o conceito de Nação (p.16) ao apresentar o trabalho desenvolvido por L´Épée : “Este erudito professor se considerava um homem transplantado no meio de uma Nação (maiúscula do autor) estrangeira, da qual queria aprender a sua língua: acreditando que a forma mais segura de o conseguir seria aprender ele próprio a língua do País (maiúscula do autor), para que melhor fossem compreendidas as instruções que desejava dar” . Nesse momento, além do conceito de nação ligado ao conceito de língua, o autor inclui o conceito de país, este tradicionalmente ligado a um lugar (geograficamente falando), talvez por se referir particularmente aos surdos de Paris, ou da França.
O autor, sempre se colocando sob o ponto de vista de quem vive aquela experiência, que poderíamos denominar “cultural”, apresenta sua vivência com o grupo de surdos parisienses. “Então, quando um surdo e mudo, como eu mesmo experimentei (Prefácio página 11), se depara com outros surdos e mudos mais educados do que ele, aprende a combinar e aperfeiçoar seus sinais, que até então eram sem ordem e sem ligação. Ele adquire rapidamente na interação de seus camaradas, a arte difícil de pintar e expressar todos os seus pensamentos, mesmo os mais independentes dos sentidos, por meio de signos naturais, com tanta ordem e precisão como se tivesse conhecimento das regras da gramática. Novamente, eu tenho que acreditar; visto que me encontrei neste caso, e falo apenas de acordo com minha experiência.” (p.20)
Desloges, como já disse anteriormente, não teve acesso à educação formal. Suas observações são, na maioria das vezes, frutos de suas vivências. Assim, ele defende a possibilidade de que aquela Língua de Sinais oferecida por Abée L´Épée aos seus alunos (que ele sabia ser uma língua adaptada aos propósitos educacionais do abade e não verdadeiramente a Língua de Sinais praticada pelos surdos parisienses) poderia se tornar uma língua universal.
Existia, na verdade, entre os pesquisadores da linguagem no século XVIII, a busca pelo que se acreditava ser uma “linguagem universal”, e Desloges se entusiasma com a perspectiva de ser aquela língua adaptada pelo professor L´Épée a solução para essa questão. “Vários cientistas ilustres buscam em vão os elementos de uma linguagem universal que se tornaria o lugar de encontro para todos os povos do universo. Como eles não perceberam que a descoberta estava pronta, que essa linguagem existia naturalmente na língua de sinais e se tratava apenas de aperfeiçoar esta linguagem e nela incluir métodos como l'Abbé de L'Epée tão bem executou.” (p.34 e 35)
Mesmo sem ser um professor de surdos, ou ligado a alguma instituição de educação de surdos, Desloges parece dominar os princípios linguísticos de análise vigentes na época. Certamente o apoio de Abbé Alexis Copineau, que é apontado apenas como revisor ortográfico e de estilo. na realidade, os pontos que Desloges aborda em defesa da língua de sinais enquanto língua de instrução e de formação de pensamento são absolutamente coerentes com um estudo formal. Evidentemente, por ser um texto de debate com o material escrito por Abbé Deschamps, essa tarefa fica facilitada, já que ele apresenta os pontos defendidos pelo seu oponente e faz a defesa da língua de sinais.
Para esse estudo, que foca na construção da ideia de um povo surdo (ou irmandade) que gera a ideia da nação surda, fica o indício bastante claro de que esse desejo político e cultural de união dessas pessoas fora do conceito médico que até então era vigente, se estabelece.
Sobre essa visão “médica” da surdez, que, evidentemente inviabiliza a visão cultural e política do povo surdo, discutiremos adiante.
MEDICALIZAÇÃO DA SURDEZ - PARTE 1
Retomando o texto de Desloges, Observations d’un sourd et muet sur un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets publicado em 1779, que faz a defesa da língua de sinais, apontando não só sua excelência linguística mas, também, indicando um caminho culturalista que levaria ao conceito de nação surda, objeto deste estudo, poderíamos concluir que o ambiente político da época era propício a essas reflexões.
Não exatamente. Havia sim uma ebulição política e social que culminou com a Revolução Francesa de 1789 e, as ideias iluministas que se baseiam na razão, liberdade e na ciência propiciaram que as discussões sobre o papel de cada indivíduo na sociedade passassem a ter protagonismo. Mas as transformações verdadeiras tiveram muitos estágios com avanços e retrocessos convivendo com ideias estabelecidas há séculos.
Pensando especificamente na questão das pessoas com surdez, não há dúvidas que existe uma questão fisiológica da privação da audição (em diversos níveis) que pode levar a problemas de comunicação. Assim, a área da medicina sempre esteve entremeada nas ações ligadas a essas pessoas. De uma maneira ou de outra, seja com a ajuda de aparelhos auditivos, ou na reabilitação da fala, sempre existiu um desejo de “normalização”.
Essas questões não interfeririam na construção do conceito de nação surda, já que desde o início de suas reivindicações os surdos se colocavam como “estrangeiros falantes de uma língua”. Mas, a visão médica da surdez traz com ela algumas falácias que durante muito tempo na história foram mantidas: um corpo doente e uma mente doente associados à surdez.
No artigo publicado “Un sourd-muet centenaire en 1896, qu’a-t-il vu?” publicado em 26 de março de 2121 pelo pesquisador Yann Cantin, apresenta uma dura realidade:
“Enquanto procurava por surdos-mudos em jornais antigos, como La Gazette des sourds-muets, l'Abbé de l'Epée etc... me deparei com um artigo no Journal des sourds-muets, de fevereiro de 1896, escrito por Henri Gaillard, então com 29 anos.
É melhor citar o autor, para ver sua emoção: No sábado, 15 de fevereiro, soubemos no Diário que a comuna de Deuil celebraria o centenário de um surdo-mudo no dia seguinte, domingo. Foi realmente uma oportunidade rara. Um surdo-mudo de cem anos raramente é encontrado. Existem surdos-mudos na casa dos oitenta. Nós conhecemos muitos deles. E além disso, este surdo-mudo de cem anos, aí existente, nos arredores de Paris, é suficiente para demonstrar os escritos infundados de certos médicos que afirmam que a surdo-mudez não permite viver muito tempo ”. (GRIFO MEU)
"Apenas como registro para discutirmos, nesse mesmo artigo de 1896, o autor se remete a outros dois surdos sobre os quais falaremos quando nos dedicarmos aos BANQUETES SURDOS propriamente ditos.
Do outro lado, há também surdos-mudos educados, e que se aproximam do centenário: Claude Richardin e Victor-Gomer Chambellan, morreram respectivamente em 1900 e por volta de 1910 aos 90 anos, o primeiro em Nancy e o outro em Paris. Esses nonagenários foram figuras proeminentes em sua época. Claude Richardin permitiu que a escola de Nancy para surdos e mudos se desenvolvesse: seu fundador, Joseph Piroux confiava muito nele!"
Chambellan foi um dos últimos professores surdos-mudos antes de a profissão ser proibida aos surdos, pela reforma educacional de 1880. Porém, Chambellan, embora esteja relativamente esquecido nos dias de hoje, organizou o Congresso de Paris, em 1889, para lançar uma reflexão e, portanto, fazer um balanço da reforma educacional. E um detalhe interessante, sua profissão de professor permitiu que seu filho se tornasse médico, enquanto ele próprio vem de pais modestos.
Essas duas pessoas viveram o início do ensino em língua de sinais, vinte anos após a morte do Abbé de l'Epée. E também vivenciaram os primeiros movimentos, ações, reações pela preservação da língua de sinais como meio de instrução. Eles também experimentaram a proibição da língua de sinais nas escolas.”
MEDICALIZAÇÃO DA SURDEZ - PARTE 2
Dando continuidade às reflexões sobre a medicalização da surdez em contraponto com a visão culturalista, apresento um trecho de minha tese de doutorado UMA LEITURA DA TRADUÇÃO DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS PARA A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS (Faculdade de Letras/UFRJ, 2000) buscando as origens dessas duas visões de mundo. Lembro que alguns termos utilizados por mim (deficiente e não pessoa com deficiência, por exemplo) eram a norma da época e por isso não fiz alterações no texto.
Esta parte da minha pesquisa foi embasada na obra de Michel Foucault, especialmente nos livros a seguir: A arqueologia do saber. As palavras e as coisas. A verdade e as formas jurídicas. História da loucura. Microfisica do poder. O nascimento da clínica. Vigiar e Punir.
Ela foi, porém, inspirada no livro La increible y triste historia de la sordera (1990, CEPROSORD, Caracas) de autoria do ex-assessor especial do Ministério da Educação da Venezuela, o professor uruguaio Carlos Sánchez, que tive a honra de conhecer o durante a realização do II Congresso Latino Americano de Bilinguismo para Surdos, em 1993, no Rio de Janeiro e rever em Mérida/Venezuela em 1996 no III Congresso Latino Americano de Bilinguismo para Sordos.
A seguir o texto, excerto das páginas 32 a 49 do meu trabalho.
“O imaginário coletivo e a imagem do surdo
Falar em direitos dos surdos, ou direitos dos “deficientes auditivos” como ainda se costuma dizer em muitos espaços públicos, remete a maior parte das pessoas a pensar em deficiências em geral. Cegos, aleijados de todo tipo, portadores de deficiências mentais, enfim, alguns dos párias da sociedade. Pessoas que, certamente, têm necessidades especiais e devem receber tratamento especial. Isso em termos teóricos.
O que acontece no dia-a-dia dessas pessoas se afasta e muito dos bons propósitos que os governos, as instituições e os cidadãos “conscientes e politizados” em geral proclamam. O reconhecimento das necessidades específicas de cada deficiente ainda parece estar muito mais ligado ao tipo de “tratamento” que cada um receberá para poder participar da sociedade mantendo um padrão de normalidade que é ditado pelo bom-senso. O objetivo ainda é, para todos os tipos de “deficiência”, a CURA.
Quando o deficiente é auditivo, questões básicas que vêm sendo negligenciadas pelos profissionais que com ele trabalham, fazem aumentar em muito as disparidades entre teoria e prática. Como na maioria quase absoluta das vezes o sujeito surdo não apresenta outro tipo de impedimento orgânico ou cognitivo (em princípio) que não sua falta de audição, há uma oscilação constante entre a exigência de que ele percorra o trajeto idêntico aos outros ocupantes do seu espaço social (falar, desempenhar suas funções estudantil, social e profissional normalmente, sob pena de ser taxado de pouco inteligente, ou rebelde, ou preguiçoso) ou um tipo de paternalismo que coloca o surdo sempre em alguns degraus abaixo de sua real capacidade.
No Brasil, por exemplo, onde durante quase um século os surdos foram impedidos em suas escolas especiais de utilizarem a LIBRAS pode-se observar hoje em dia de norte a sul do país uma incrível homogeneidade lingüística que só pode ser explicada pela força intrínseca de uma língua viva.
Quando se sabe que as línguas de sinais não têm seu registro escrito, que as línguas de sinais são “fala”, o que parece inicialmente incrível torna-se quase mágico. A constatação de que existem grupos de pessoas espalhadas por todos os cantos do planeta que falam essas línguas naturais, o que significa dizer que são grupos culturais, ou micro-comunidades culturais como prefiro, com tradição cultural oral e sem história escrita relatada (ou incipiente) e que são basicamente urbanas, após o estranhamento inicial percebemos a abertura de perspectivas científicas inéditas.
Essa realidade vem passando por um rápido processo de transformação. A possibilidade de utilização disseminada das gravações em vídeo está alterando drasticamente o comportamento dessas micro-comunidades, que, rapidamente passam a se integrar através de uma rede de comunicação ainda totalmente livre e desorganizada. No Rio de Janeiro, por exemplo, os Surdos mais politicamente atuantes (que circulam em torno da FENEIS) conhecem seus pares suecos, americanos, japoneses, ingleses, franceses e outros através de fitas de vídeo com depoimentos, histórias, festas, que chegam até eles das maneiras mais distintas.
Mas, o que fazer com a história perdida, a história esquecida ?
A presente tese pretende contribuir de alguma maneira para o resgate desse passado. Entender o processo histórico que desencadeou na existência de escolas especiais para surdos pode auxiliar no estabelecimento das políticas globais direcionadas à pessoa surda, além de subsidiar os profissionais que com ele trabalham a um melhor entendimento da chamada “questão surda”.
Não se pode esquecer, porém, que estaremos traçando um trajeto sob o ponto de vista do outro, do ouvinte (o que fica claro quando se percebe que as poucas fontes existentes relatam a história da educação dos surdos, da sua reabilitação para o mundo ouvinte).
Tarefa impossível seria tentar assumir o papel do surdo. Porém, como essa parte da tese foi pensada e desenvolvida a partir da leitura do texto La increible y triste historia de la sordera do professor Carlos Sánchez, ex-assessor do ministro da educação da Venezuela e que, em 1992, implantou naquele país uma política educacional bilíngüe para surdos (língua de sinais/língua oral), que por sua vez fundamenta sua pesquisa em textos de Michel Foucault, senti-me à vontade para dialogar com esses autores e aprofundar algumas questões.
Na grande maioria das monografias, dissertações e teses versando sobre a surdez com abordagem culturalista, observa-se a existência de um capítulo dedicado à uma reflexão ou retomada histórica, todas bastante parecidas. Não me furto a apresentar minha pequena e talvez repetitiva versão dos fatos. Acho que cada pesquisador acrescenta um tijolo na construção desse edifício necessário para que os surdos possam olhar para seu futuro mais confiantes.
A verdadeira história dos surdos só poderá ser retomada por eles mesmos.
Serve esse capítulo como incentivo e delineamento de alguns pontos.
A dúvida vem de longe....
Aristóteles ( 384-322 a.C.) declara que audição é, de todos os sentidos, o que dá a maior contribuição para o conhecimento, já que o discurso só é compreensível porque a fala é composta por palavras, cada uma delas um símbolo racional. Assim, para ele, um cego seria necessariamente mais “inteligente” que um surdo-mudo (utilizando a terminologia da época). Lucrécio ( 95-53 a.C.) sentencia “No hay arte possible para instruir al sordo”, colocando uma questão que até hoje permeia as discussões…
Na bíblia há um relato de um milagre de Jesus que “cura” um surdo e este se põe imediatamente a falar. A palavra para designar surdo e mudo é única “kophoi”. Não existe língua possível para eles.
Essa imagem da antiguidade persiste ainda hoje no imaginário popular: o surdo-mudo. Como se a manifestação de uma condição fosse inseparável da outra. O senso comum ainda mantém o conceito invariável.
San Juan Beverly, em fins do século VI, relata que ensinou falar um jovem “surdo-mudo”. Mas as poucas menções a qualquer tipo de “aproximação” com os surdos fica por conta de curas milagrosas ou inexplicáveis.
Em 1198 o papa Inocêncio III autoriza o casamento de um “mudo” , argumentando que “apesar de não poder falar, em sinais pode se manifestar”.
O (re)nascimento das cidades, as viagens colocando povos e culturas em contato parece dar ao surdo sua primeira leitura como grupo lingüístico/cultural. Podemos apontar esse momento como o do “surgimento” das línguas de sinais. A estatística trabalha a favor dos surdos, já que em cada mil habitantes, 15 são surdos de todas as idades. É evidente que a movimentação (lembrando mais uma vez que as línguas de sinais são fala e não têm registro escrito) propiciada pelo novo momento histórico irá beneficiar o encontro dos iguais.
É evidente também que eles passam a ser notados. E notados como “diferentes”. Assim como veremos adiante com relação aos loucos, os surdos solitários do feudo eram absorvidos como responsabilidade coletiva, assimilados. Agora eles podem até mesmo incomodar o poder instituído, já que, em grupo, podem parecer estrangeiros (perigosos, maldosos, falsos etc).
A preocupação com eles leva à necessidade de aproximá-los da “normalidade”. Surge então o primeiro “professor” de surdos da história, o monge espanhol Pedro Ponce de León (1520-1584), da ordem dos beneditinos, a quem se atribui também a invenção do primeiro alfabeto datilológico (alfabeto manual) . Ele ensina a três filhos de nobres a escrita e a fala em grego, latim e italiano. Meadow (1980 in Sánchez:1990 ) diz a esse respeito: “O fato de que os primeiros alunos de Ponce de León eram nobres carece de explicação, já que a fala era um pré-requisito para o reconhecimento dos direitos legais, incluindo o direito de possuir propriedades. Os ricos tinham, então, não só os meios financeiros, mas também a motivação financeira para encontrar mestres para seus filhos.”
Mas o sucesso do monge, e, é claro, a nova concepção de mundo e de homem renascentista, traz ganhos reais para os surdos. E por toda Europa começam a aparecer candidatos a essa nova “ciência”: ensinar os surdos a falar.
Quais eram os recursos empregados não importavam. Assim, a comunicação gestual de todo tipo aparecerá como recurso na aquisição da fala.
O mais antigo texto em língua inglesa que descreve a língua de sinais como um sistema complexo na qual “homens que nascem surdos e mudos(...) podem argumentar e discutir retoricamente através de sinais” é de 1644 - Chirologia, de autoria de J. Bulwer. Para ele, a Língua de Sinais era universal e seus elementos constitutivos “naturais”, o que corresponderia a icônicos. O mesmo Bulwer publica em 1648 Philocophus, dedicado aos irmãos surdos Edward e William Gostwick, barões. Nesse texto é afirmado que um surdo pode expressar-se perfeitamente através dos sinais como o faria um ouvinte em sua língua oral. (Woll,1987:12)
Em 1775 uma data marcante: a fundação do Instituto de Surdos e Mudos de Paris, onde o abade l’Epée (1712-1789) desenvolve a descrição da Língua de Sinais utilizada pelos Surdos de Paris, produzindo uma espécie de “dicionário” língua francesa/língua de sinais. Seu trabalho educacional com essa língua de sinais, desenvolvido desde 1760 até sua morte, será conhecido e difundido por todo o mundo como o “método manual” ou “francês”.
Há uma mudança radical na metodologia de ensino que vigora no renascimento, já que os alunos de l’Epée aprendiam a língua escrita e a língua de sinais, deixando a oralização de lado. Outro ponto importante do trabalho do abade é que seus antigos alunos foram se tornando professores, trazendo uma mudança de comportamento inédita na comunidade surda.
“Nas décadas seguintes à divulgação dos trabalhos de l’Epée, e, em virtude da adoção de sua metodologia em inúmeros locais, os surdos de toda uma geração, não só em França, mas também na Rússia, Escandinávia, Espanha, Itália e Estados Unidos, puderam destacar se e ocupar postos de importância na sociedade de seu tempo, coisa que de nenhuma maneira poderiam alcançar sem a educação que receberam, na falta da qual permaneceriam limitados às tarefas mais baixas ou a mendigar pelas ruas.” (Sánchez, 1990:51 citando Stokoe:1978).
Sánchez ( p.53/54) lembra que as concepções de L’Epée não escaparam, apesar do ineditismo da proposta, dos preconceitos próprios de sua época, e que não poderia ter sido de outra maneira. O abade acreditava que a língua de sinais que usavam os surdos era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Com essa finalidade introduziu o que ele denominou de “signos metódicos”, que representavam as palavras da língua francesa que no entender o abade não existiam na codificação gestual, tais como preposições e artigos, entre outras. Em suas aulas utilizava sistematicamente os sinais naturais da língua de sinais completados com alguns signos de sua invenção, e as frases eram estruturadas segundo a sintaxe do francês.
Apesar disso o abade entrou para a brevíssima história relatada dos surdos como herói. Em um livro americano escrito por dois surdos encontramos que persiste até mesmo uma lenda apontando L’Epée como “inventor” das línguas de sinais.
Com a fundação, em 1790 da escola “gestualista” de Viena, poderíamos afirmar a existência de uma forte corrente de valorização das línguas de sinais na educação de surdos.
Há, porém, um movimento que segue por outros caminhos. Com origem reconhecida na Alemanha, a filosofia que se denomina Oralismo difundia o “método germânico”. Para seus teóricos, um dos problemas da educação dos surdos estava exatamente no uso da comunicação gestual e na existência de escolas residenciais especiais para surdos, que potencializavam o problema. Interessante observar que até hoje a Alemanha continua sendo o mais importante país que mantém a filosofia Oralista como política educacional para seus surdos.
Mesmo seguindo rumos opostos, documentos demonstram a existência de um diálogo entre os teóricos das duas filosofias: Samuel Heinicke (1729-1784), autodidata e militar germânico, ferrenho defensor do Oralismo, corresponde-se com o abade L’Epée.
Jacobo Pereira (1715-1790 para Sánchez e 1780 para a tradutora Magnólia Costa Santos), português que realiza a maior parte do seu trabalho na França e premiado pela Academia Francesa de Ciências em 1749 (apresentando o caso de Azy d’Etavigny, um aristocrata por ele educado), citado por Sánchez como Oralista, aparece na Carta sobre surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (1749) de Diderot (1713-1784) como seu consultor sobre a língua de sinais.
No início do século XIX os não resolvidos problemas educacionais dos surdos, que não deixaram de existir com as escolas gestualistas, sofrem uma forte influência dessa filosofia “otimista”, o Oralismo, e mesmo na França muitas crianças surdas acabam realocadas em escolas regulares. Segundo Sánchez (p. 66) a experiência fracassa, já que por todos os lados surgem protestos de pais e professores de ouvintes, temendo uma “contaminação” . Fracassada ou não, a experiência desemboca no Congresso de Milão (1880), que reúne professores de surdos e decide expurgar da educação dos seus pupilos a língua de sinais. Esse pensamento dominará a educação de surdos por quase cem anos, trazendo para as comunidades surdas prejuízos enormes. Sob o ponto de vista educacional nenhum avanço foi obtido, já que a “normalização” do surdo, ou a exigência de que ele fale, de que ele faça leitura labial, de que ele se comporte como um ouvinte, não advém de decretos. As questões discutidas hoje em dia pelos educadores oralistas são absolutamente as mesmas que as de dois séculos atrás. Sob o ponto de vista cultural, a proibição do uso da língua de sinais no espaço escolar repercutiu profundamente nos grupos organizados de surdos, gerando seu enfraquecimento.
Em 1960, quando nos Estados Unidos o lingüista William Stokoe publica seu trabalho provando serem as línguas de sinais línguas naturais com todas suas propriedades, inicia-se um repensar sobre a questão da surdez, que dará origem à filosofia da Comunicação Total e posteriormente ao Bilingüismo, essa última entendendo a questão surda como lingüístico/cultural. O surdo passa a ser encarado como minoria bilíngüe e bicultural e todas as propostas educacionais, culturais, sociais partem dessa hipótese, construindo uma nova visão . Mas o caminho para se chegar a isso foi longo, como veremos
Surdos, loucos, estrangeiros: os insanos
“Mas que diferença se deve estabelecer entre a estupidez e as enfermidades congênitas dos sentidos? Tratando a demência como uma perturbação do juízo e a estupidez como uma deficiência da sensação, não se está correndo o risco de confundir um cego ou um surdo-mudo com um imbecil?”
Nota de Foucault no pé da mesma página: “Durante muito tempo, na prática, se considerará a imbecilidade como uma mistura de loucura e enfermidade sensorial. Uma ordem de 11 de abril de 1779 prescreve à Superiora da Saltêtrière que receba Marie Fichet, conforme relatórios assinados pelos médicos e cirurgiões ‘que constatam que a dita Fichet nasceu surda-muda e demente’”. (Foucault: 1989, p.260)
Os loucos de todo o tipo sempre existiram. Se na Idade Média eles foram vistos como responsabilidade de seu feudo, contribuindo com suas insanidades (brincadeiras, ataques de loucura e outras manifestações eram vistos como espetáculo, de certa forma) para o dia-a-dia dos encerrados entre muralhas, a Renascença e sua mobilidade começa a não entender/absorver os mendigos, os preguiçosos, os desempregados irados.
A Nau dos Loucos, “estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos.” (Foucault:1989, p. 9) certamente não era apenas uma figura literária.
Os loucos iam sendo escorraçados de lá para cá até finalmente serem trancafiados em prisões em alguma cidade mais “compreensiva”.
“A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão fértil entre duas terras que não lhe podem pertencer.” ( p. 9)
O louco, em seu processo de expulsão do feudo torna-se inicialmente estrangeiro. Ele não é o doente que contagia como os leprosos. Para aqueles já havia a solução. A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários multiplicam-se pela Europa. Segundo Mathieu Paris, chegaram a haver 19.000 delas em toda Cristandade (Foucault:1989, p. 3).
Segundo Foucault, com o final das cruzadas e a conseqüente ruptura dos focos orientais de infecção e também como resultado espontâneo da segregação dos leprosos, a partir do século XV a terrível doença chega a uma quase erradicação.
Escasseiam os leprosos e deixam os seus locais de segregação vazios, permanecendo as estruturas físicas e a idéia da exclusão como “saneadora”. “Freqüentemente nos mesmo locais, os jogos de exclusão são retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde.
Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que a salvação se espera para eles e para aqueles que os excluem” (p. 6).
Chegam inicialmente os atingidos pelas doenças venéreas, mas não assumem no mundo clássico o papel que cabia à lepra no interior da cultura medieval. Nos hospitais eles se misturam aos outros doentes. Há uma cura para eles. Sua passagem pela segregação é breve.
Já o louco, que ainda nem ao menos é reconhecido como tal, demora um pouco mais para ser “medicalizado”...
A “Grande Internação” poderia ter como data-início o édito real de Luís XIV de 27 de abril de 1656 que criava o Hospital Geral. A princípio a instituição deveria impedir a “mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens”. É o ápice de medidas que começaram a ser tomadas em 1532 quando o parlamento de Paris manda prender todos os mendigos para fazê-los trabalhar nos esgotos da cidade amarrados, dois a dois, por correntes. “Trata-se de recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária. É preciso também zelar pela subsistência daqueles que não puderam encontrar seu lugar ali, mas que poderiam ou mereciam estar ali.” (Foucault:1989, 49)
O internamento está intrinsecamente relacionado à questão do trabalho. Quando há emprego e altos salários essa população servirá para dar mão-de-obra barata; em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas. “Não nos esqueçamos que as primeiras casas de internamento surgem na Inglaterra nas regiões mais industrializadas do país: Worcester, Norwich, Bristol; que o primeiro Hospital Geral foi aberto em Lyon, quarenta anos antes de Paris...” (p. 67)
O Hospital Geral (na França) passa a ser um braço do rei que, através da sua existência, reúne em um só local a polícia e a justiça. Segundo Foucault seria a terceira ordem de repressão. Não há uma idéia médica por trás do Hospital Geral, ele é uma instância da ordem.
“A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosh perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão(...) Não mais existe a barca, porém o hospital” .( p. 42)
Podemos observar, então, segundo Foucault, dois tipos de instituição disciplinares nos séculos XVII e XVIII. A instituição fechada, estabelecida à margem, que isola o mal, suspende o tempo. Do outro lado o panoptismo, que tenta fazer o exercício do poder de forma mais leve, mais sutil, “um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir” (Foucault:1972,184). Há uma multiplicação desse tipo de instituição na época, ocupando cada vez menos um lugar marginal. O que era uma medida circunstancial passa a ser modelo geral. Desde os exércitos até os hospitais, passando, é claro, pelas escolas e os locais de trabalho, aos poucos todas as instituições se inserem nesse movimento.
Se antes o papel de uma instituição disciplinar era apenas “neutralizar os perigos, fixar as populações inúteis ou agitadas, evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas; agora se lhes atribui (pois se tornaram capazes disso) o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos.(...) Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou escolas cristãs elementares, as justificações dadas era principalmente negativas: os pobres, não tendo recursos para educar os filhos, deixavam-nos ‘na ignorância de suas obrigações, e entregues ao simples cuidado de viver; e tendo eles mesmo sido mal educados, não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram’; o que acarreta três inconvenientes ponderáveis: a ignorância de Deus, a preguiça (com todo seu cortejo de bebedeira, de impureza, de furtos, de banditismo) e a formação dessas tropas de mendigos, sempre prontos a provocar desordens públicas e que só servem para esgotar os fundos do Hôtel-Dieu”. (Foucault: 1972, 185)
“Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas. Bentam se maravilhava de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves: fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas; basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas. O peso das velhas “casas de segurança”, com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela geometria simples e econômica de uma “casa de certeza”.(p. 178/79)
Em meados do século XVIII pode-se perceber uma mudança nos trâmites da justiça. É uma época de inúmeros projetos e reformas. O crime passa a ser repensado e são redigidos os códigos “modernos”: na Rússia em 1769, na Prússia em 1780, na França em 1791, apenas como exemplos. A confissão pública dos crimes foi abolida na França em 1791 pela primeira vez, depois novamente em 1830 (com um pequeno período de restabelecimento), o pelourinho foi supresso em 1789. Na Inglaterra o instrumento de punição desapareceu em
1837.
“Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos que abriram, por volta de 1760, o período que ainda não se encerrou - é simples, quase evidente.
Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma... Porém julgavam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos.”
(Foucault:1972, p. 20/21)
O autor cita N.H. Julius, em um livro de 1831 (p. 384-386), “Leçons sur les prisons”, tradução francesa, falando sobre o panoptismo. Dizia ele que o princípio arquitetural da proposta era superado por ser um acontecimento na história do espírito humano. Mais do que uma solução técnica, o que estava em trâmite era a construção de um tipo de sociedade. Enquanto a antiguidade foi a civilização do espetáculo (templos, teatros, circos), por “tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de um pequeno número de objetos”, a idade moderna não tem a vida pública e a comunidade como elementos principais. Julius via nossa sociedade como de vigilância, já que cada vez mais o Estado passa a interferir na vida de cada cidadão.
Foucault vê mais além, associando o panoptismo à própria mitologia da personagem napoleônica, aquele que descortina tudo com um só olhar, mas a que nenhum detalhe, por ínfimo que seja, escapa jamais (p.190).
Seja através do internamento tradicional ou da instituição panóptica, a prática da exclusão dos diferentes de todo o tipo floresce na Europa até o final do século XVIII, só iniciando um processo de refluxo a partir daí, aparecendo de forma mais sutil .
Em 25 de agosto de 1793, Philippe Pinel foi nomeado, por decreto, médico dos alienados de Bicêtre. Teórico da “liberdade para os loucos” e inventor da camisa de força…
“A que liberdade se refere Pinel? O louco passa do cárcere ao manicômio, e as cadeias e os castigos serão substituídos pela camisa de força, o eletrochoque, e mais tarde pela lobotomia e os tranqüilizantes. A submissão do louco se justifica agora em razão da sua condição de enfermo, e passa do âmbito policial ao âmbito da medicina. Se acaba de produzir a medicalização da loucura”.( Foucault: 1989, 58).
E para o surdo a situação não será diferente. Quando, nos últimos anos do século XVIII dá-se o “nascimento” da medicina moderna, com seu “furor classificatório”, com um médico todo-poderoso e cientificamente comprovado, mandam-se os loucos para os asilos, os criminosos para as cadeias, os doentes para os hospitais e os surdos para escolas internas apropriadas para sua “recuperação”.
A modernidade chega. O século XIX é marcado pelo desenvolvimento da tecnologia em todos os setores da atividade humana. A medicina incorpora aos seus conhecimentos as descobertas. Para Sánchez essa incorporação “resolveu” a questão ideológica anterior ao conhecimento científico: se existe um doente, existe uma doença e deverá existir uma cura.
Assim, o surdo deve falar, já que ele pode (enquanto possibilidade teórica) falar. Os descobrimentos da eletroacústica que permitiram o desenvolvimento das primeiras próteses auditivas, por exemplo, foram de grande auxílio para aqueles surdos parciais ou pós-lingüísticos. Por outro lado, o fato de alguns conseguirem chegar à pseudonormalidade desejada pela ideologia, alijou a grande massa restante do processo, de uma certa maneira
novamente os aproximando dos idiotas, dos loucos. Exatamente aqui o círculo se fecha.
Se o discurso do poder afirma que o surdo pode falar, entender (até mesmo ouvir, acredita-se, quando protetizado), participar do processo social sem grandes dificuldades, todos os que não conseguem “chegar lá” são a representação do fracasso.
Uma breve análise da história relatada da educação de surdos em treze países (que realizei para a dissertação de mestrado, ver Ramos: 1985) demonstra a pertinência do paralelo traçado pelo professor Carlos Sánchez entre loucura e surdez. A questão da normalidade é o ponto de partida para todas as experiências educacionais realizadas até hoje. Oscilando entre “eles são iguais ao normal” e “eles são muito diferentes”, na verdade o objetivo final de todas abordagens até hoje é a adequação da população surda ao padrão considerado normal.
Alguns ganhos aqui e ali, individualmente, apenas aparecem como confirmadores da regra que apresentamos.”
FERDINAND BERTHIER: O PRIMEIRO LÍDER SURDO
Vimos em Desloges (1779) a primeira manifestação da proposta de uma NAÇÃO SURDA.
Mas nosso foco será sobre outra geração de surdos, já no início do século XIX, que levará adiante o projeto político dessa proposta. Antes de começarmos a estudar os textos indicados, penso que seria interessante uma apresentação um pouco mais aprofundada de alguns desses personagens.
O primeiro e, certamente, o mais importante deles é Ferdinand Berthier, o organizador do primeiro BANQUETE SURDO e o autor principal com o qual iremos trabalhar, buscando em sua obra indícios da proposta da NAÇÃO SURDA.
Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets.
Notice sur la vie et les ouvrages d’Auguste Bébian.
Les sourds-muets avant et depuis l’abbé de l’Épée. L’Abbé de L’Épée: sa vie, son apostolat, sex travaux, sa lutte et ses succés.
L’Abbé Sicard...précis historique sur sa vie, ses travaux et ses succès…
Antes de começarmos, vamos conhecer um pouco mais sobre Berthier?
Traduzido do verbete da Wikipedia
https://en.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_Berthier
Ferdinand Berthier (30 de setembro de 1803 em Louhans, Saône-et-Loire, França - 12 de julho de 1886 em Paris) foi um educador surdo, organizador intelectual e político na França do século XIX e é um dos primeiros defensores da identidade surda e cultura.
Berthier frequentou a famosa escola para surdos em Paris como um jovem estudante em 1811, quando a escola estava sob a direção de Abbé Roch-Ambroise Sicard. Ele veio do sudeste rural da França para aprender habilidades vocacionais básicas e alfabetização para se preparar para o trabalho como comerciante. Ele foi influenciado por seu professor Roch-Ambroise Auguste Bébian, um homem ouvinte que havia aprendido a Língua de Sinais Francesa e publicou o primeiro estudo sistemático e de defesa da língua. Berthier também ficou impressionado com dois importantes alunos surdos da escola que mais tarde se tornaram professores: Jean Massieu e Laurent Clerc. Aos 27 anos, Berthier havia se tornado um dos professores mais antigos da escola.
No final de 1837, Berthier solicitou ao governo francês permissão para criar a Société Centrale des Sourds-muets, que foi oficialmente fundada no ano seguinte como a primeira organização a representar os interesses da comunidade surda. A organização tinha como objetivo reunir "todos os surdos espalhados pelo mundo ... para colocar os falantes e surdos de inteligência e coração em relacionamento uns com os outros, não importa a distância, não importa a diferença de idioma, cultura e leis", e ofereceu aos trabalhadores surdos um meio prático de apoio mútuo por meio de "ajuda mútua" e uma maneira de organizar e frequentar aulas de educação de adultos. Berthier desempenhou um delicado ato de equilíbrio como um defensor apaixonado da identidade surda e da língua de sinais, apesar de estarem naquela época sob um clima social e político repressivo.
Berthier escreveu livros sobre história e cultura surda, observando artistas surdos e poetas de língua de sinais de seu tempo.
"PRESERVAÇÃO" POR GEORGE W. VEDITZ
Entre os organizadores e participantes dos BANQUETES SURDOS, Ferdinand Berthier ( 1803-1886) certamente é o mais importante. Não só por sua atuação política, mas pelo fato de ser o primeiro autor surdo com diversos livros publicados. Ele foi também professor do INJS de Paris, tendo sido aluno da escola sob a direção de Abbé Roch-Ambroise Sicard. Foi também aluno de Roch-Ambroise Auguste Bébian, primeiro autor ouvinte a publicar um estudo sobre a Língua de Sinais. Sobre esses personagens falaremos futuramente.
Nesse seu primeiro livro publicado (em 1836, dois anos após a realização do primeiro BANQUETE SURDO), Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets, Berthier nos dá sua versão da história da educação de “surdos-mudos” como se dizia na época, no mundo. Baseado em textos publicados e estatísticas, percebemos sua preocupação em formalizar academicamente suas afirmações, com o objetivo claro de valorizar a educação dos seus “irmãos”, para os quais, aliás, oferece o trabalho. Outra denominação que pode parecer preconceituosa, mas, na realidade é usada no sentido de comunidade, seria o “compagnons d`infortune” que aparece no trecho abaixo e em mais três ocasiões no texto (p. 9, p. 44 e p.45).
“PARA OS SURDOS DE TODOS OS PAÍSES
Irmãos,
O Instituto Histórico me deu a honra de apresentar uma dissertação sobre a educação de surdos-mudos em todos os momentos e em todos os países. (...) Vários autores trataram da história da educação dos surdos e mudos. (...) Eu não finjo ter feito melhor.
Apeguei-me ao essencial, aos fatos históricos, abandonando todas aquelas teorias vazias que não te ensinam nada(...). Eu me consideraria suficientemente recompensado pelo meu trabalho se ele parecer digno de alguma atenção para homens sérios e, se for lido, principalmente por meus companheiros de infortúnio.” p. 9 (GRIFOS MEUS)
Berthier inicia seu trabalho com uma espécie de revisão sobre a história de educação dos surdos através da história. E o faz de maneira bastante minuciosa, pois, mais de 150 anos depois, quando iniciei meus estudos sobre esse tema, encontrei partes desse levantamento em alguns autores diferentes. Pensando-se no acesso que um pesquisador teria no início do século XIX, realmente é algo a ser destacado.
Quando seu relato chega no trabalho realizado pelo Abée de l'Epée, após mais ou menos 10 páginas de reconstituição histórica, Berthier inicia uma série de elogios àquele que foi chamado como “pai dos surdos”, talvez um elo de ligação para esses “irmãos” que saíram de um lugar sem possibilidade de reconhecimento social para a construção da ideia da nação surda.
“Este grande homem descobriu com seu olhar de águia, na pantomima que ainda não tinha formato estabelecido, as sementes de uma língua ainda mais abundante e mais fecunda que a mais rica e cultivada língua do mundo. Ele afirmou, diante de uma atônita Europa, que a língua falada pelos surdos e mudos é eterna e universal. E disse ainda que a desejada língua onde todos os homens de todas as nações pudessem se comunicar, a língua dos gestos cumpriria esse propósito” (p. 24 tradução minha ).
Durante toda sua vida Berthier defendeu esta “superioridade” da língua de sinais, em meu ponto de vista como uma maneira de colocar os falantes dessas línguas em uma posição destacada em oposição à dura realidade que os surdos experimentavam. Ele cita, por exemplo, um trecho da introdução do livro de L'abbé Sicard (Cours d'instruction d´un sourd-muet, 1880), que as pessoas surdas seriam “um autômato vivo, uma estátua que precisa ser aberta em partes para atingir todos seus sentidos; uma máquina ambulante na qual a organização, em termos de efeitos, é inferior àquela dos animais” (p. 30 tradução minha)
O autor também aproveita o relato que faz sobre a história da educação de surdos para enaltecer os seus pares surdos, de uma certa maneira até mesmo para contrapor algumas das falas de Sicard, como as do parágrafo acima.
“Os mais notáveis alunos surdos do Abée Sicard foram Massieu e Clerc . O nome do primeiro tornou-se famoso além das fronteiras da Europa, mais pelo apoio que lhe deu seu mestre, do que por suas respostas originais, mesmo que às vezes incorretas, pelas quais era aplaudido em exibições públicas. O outro, depois de cumprir com distinção por nove anos em sua função de “repetidor” no Instituto de Surdos de Paris, foi convidado em 1816 para visitar os Estados Unidos e divulgar os tesouros da educação com seus irmãos do Novo Mundo. (p. 37 tradução e grifo meu).
Além de destacar a importância dos surdos franceses, os conecta como IRMÃOS aos norte-americanos.
Mesmo sendo o objeto do presente estudo o levantamento dos indícios textuais produzidos por autores surdos sobre a ideia de uma nação surda, não podemos deixar de observar que este capítulo faz uma retomada histórica sobre a educação de surdos exemplar.
A segunda parte do estudo foca na apresentação de estatísticas relativas à educação dos surdos na Europa e América, em locais onde existiam escolas especiais para surdos. Fica como curiosidade que o Brasil aparece ao lado da Grécia (?) , como “parece que existem poucos surdos-mudos por lá”. (p. 52 , tradução minha).
Para aqueles que têm interesse por dados numéricos sobre a população surda e escolas de surdos, é um trabalho bastante interessante.
Confira o livro Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets e boa leitura!
Sua ligação com a comunidade surda começa cedo. Por ser filho de uma rica família de comerciantes, aos 12 anos se muda para Paris para seguir com seus estudos. Afilhado de Abée Sicard (então diretor do Instituto de Surdos de Paris), foi residir no Instituto e rapidamente se interessou pelos surdos e sua língua. Criado com os internos, Auguste Bébian torna-se um falante perfeito da língua de sinais.
Em 1816, foi nomeado tutor do Instituto no lugar de Laurent Clerc, que partiu para os Estados Unidos. Sicard então o nomeou “censor dos estudos” (uma espécie de assessor do diretor) em 1819. Auguste Bébian foi afastado do Instituto em 1821 por causa de disputas com certos professores e com a diretoria. Ele então tentou fundar uma escola particular em Paris em 1836, mas falhou. Dirigiu brevemente a escola de Rouen de 1832 a 1834 antes de retornar a Guadalupe onde, doente, morreu em 24 de fevereiro de 1839 aos 50 anos.
Tradução livre do artigo do site
https://www.injs-paris.fr/page/roch-ambroise-auguste-bebian-1789-1839
A maior importância de Bébian para nosso estudo é exatamente essa sua adaptação ao que podemos chamar atualmente de cultura surda, pois, além de ser falante bilíngue do francês e da Língua Francesa de Sinais, foi um estudioso dessa língua e autor de três trabalhos muito bem reconhecidos sobre a mesma:
1817 : « Essai sur les sourds-muets et sur le langage naturel, ou introduction à une classification naturelle des idées avec leurs signes propres ».
1825 : « Mimographie ou essai d’écriture mimique propre à régulariser le langage des sourds-muets ».
1827 : « Manuel d’enseignement pratique des sourds-muets ».
NOTÍCIAS SOBRE A VIDA E AS OBRAS DE AUGUSTE BÉBIAN
Nesse livro, Notice sur la vie et les ouvrages de Auguste Bébian, publicado em 1839, no mesmo ano em que morreu Auguste Bébian, Berthier pretende prestar sua homenagem ao professor ouvinte fluente em Língua Francesa de Sinais e o primeiro a publicar estudos gramaticais sobre essa língua (Mimographie, 1925).
Lembrando que em 1834 teve lugar o primeiro BANQUETE SURDO em Paris, percebemos que Berthier, além de reverenciar a memória de Bébian, mantém sua luta em defesa dos surdos e da sua Língua de Sinais. Até mesmo pelo fato que Bébian era um estudioso e admirador dessa língua, nada mais apropriado para a divulgação das suas qualidades intrínsecas.
Enquanto que no livro anteriormente publicado, Historie e statistique de l´éducation des sourds-muets, pudemos encontrar algumas menções ao sentido de comunidade dos surdos (a recorrência de palavras como “irmãos”, “companheiros de infortúnio”), nesse material Berthier foca na defesa da Língua de Sinais, inspirado, evidentemente pelo próprio homenageado.
“Para grande surpresa de quem assistia às aulas, ele revelou sem esforço toda a riqueza, toda a flexibilidade, toda a energia de que a língua dos surdos-mudos apresenta. É graças a essa ação que pudemos, pobres crianças carentes, superar as maiores dificuldades de estudo, podendo saborear nossos melhores escritores, traduzir adequadamente todos os autores franceses e estrangeiros. (...) 'Abandone', ele dizia, 'o velho homem, isto é, o homem oralizado, então concebe claramente o teu pensamento e não deixará de encontrar Sinais para o exprimir.'” p. 8
Nas páginas seguintes, o autor relata uma das “aulas abertas” que eram realizadas no INJS, demonstrando a capacidade de a Língua de Sinais não só entender conceitos filosóficos sofisticados, mas sempre destacando a beleza dessa língua.
Em 1817 Bébien publica seu Essai sur les sourds-muets et sur le langage naturel, ou Introduction à une classification naturelle des idées avec leur signes propres. Segundo Berthier,
“Nunca um livro revelou uma compreensão tão perfeita da natureza, da mente e do coração dos surdos-mudos.” p. 11
É interessante que Berthier, mesmo na defesa da Língua de Sinais, traz elementos da defesa do que chamaríamos atualmente de Cultura Surda. O que vejo claramente como a defesa da existência de um “povo surdo”, que representa e se representa nessa língua a todo tempo valorizada.
A obra mais importante de Bébien foi, sem dúvida nenhuma, o Mimographie, de 1925, onde o professor busca “estabelecer um sistema regular e uniforme de sinais (...) e escrever todos os signos imagináveis com um pequeno número de caracteres; acrescentando pontos fisionômicos (correspondentes aos nossos pontos de exclamação e ponto de interrogação)” p.12/13. O trabalho de Bébien poderia ser associado ao que atualmente denominamos escrita de sinais ou escrita de língua de sinais. Na realidade, o objetivo do autor, além de fazer um levantamento linguístico da língua era documentar a mesma em uma época que os recursos de imagens em movimento ainda não existiam. E, claro, validar essa língua como completa e funcional como qualquer outra língua oral existente.
“Um dicionário de signos mimográficos não ofereceria, sem dúvida, menos vantagens aos professores do que aos alunos; alguns encontrariam ali os signos naturais das ideias, e outros o significado das palavras, como as crianças do ensino médio encontram em um dicionário, ao lado das palavras francesas correspondentes, o significado de palavras latinas ou gregas que não conhecem. Assim, o mais ignorante surdo-mudo poderia aprender em oito ou dez dias a pintar seu pensamento no papel, sem a necessidade de traduzi-lo preliminarmente para nenhuma língua. " p.13
Bébien, na opinião de Berthier, poderia ser considerado um “novo” pai dos surdos, como o fora Abée de l´Épée. E o livro irá recontar a história da vida e da luta daquele ouvinte com “alma surda”, falante bilíngue de Francês e Língua de Sinais. Para nosso estudo, fica a certeza que existia na época um movimento bem articulado de defesa da Língua de Sinais e do que podemos reconhecer como “cultura surda”.
Ao relatar um famoso episódio de 1832, quando os professores surdos do Instituto e a direção tiveram um embate a respeito da oralização em detrimento do uso do Sinais na educação dos surdos, Berthier destaca que “a língua gestual, essa língua admirável, universal e sem rival, é e deve ser a principal intérprete de sua inteligência. Este é o julgamento feito pelas autoridades mais sérias em tal assunto. Setenta anos de experiência existem para atestar a superioridade incontestável e indiscutível do sistema que fundamenta o ensino de surdos na língua que Deus nos deu.” p.33
Confira o livro Notice sur la vie et les ouvrages de Auguste Bébian e boa leitura!
pélissier, poeta e professor
Quando iniciei essa pesquisa sobre os Banquetes Surdos sabia que, além dos surdos Pierre Deslogues e Ferdinand Berthier (meus “informantes” sobre a ideia da existência de um povo surdo), outras personalidades surdas tiveram destaque na época. Penso que quando eu mergulhar nas Atas dos Banquetes Surdos poderei encontrar novos personagens. Isso já estava previsto. Mas com o estudo dos primeiros textos já começam a aparecer esses surdos ilustres e defensores da cultura surda.
A seguir apresento uma rápida biografia de Pierre Pélissier, deixando para outro momento a inclusão de sua obra em busca de indícios da construção da nação surda.
O francês Pierre Pélissier (1814-1863) ficou surdo aos cinco anos de idade, de causa não conhecida. Como a maioria das crianças da época, só começou a ser alfabetizado tardiamente: em 1825 foi admitido na escola para jovens surdos em Rodez, depois em Toulouse, onde acabou se tornando professor da instituição. Em 1843 ele passa a trabalhar como professor na então Escola Imperial para Surdos-Mudos em Paris (o atual Instituto Nacional de Jovens Surdos), onde permaneceu por vinte anos, até sua morte.
É o poeta surdo mais famoso: em 1837, apresentou em um concurso da Academia de Jogos Florais de Toulouse, uma elegia intitulada "Mes regrets/Meus arrependimentos" que lhe rendeu uma menção honrosa. Até hoje esse poema é muito valorizado pela comunidade surda francesa. Em 1840 , na Revista L'Ami des sourds-muets , seu sinal é descrito "Com a mão direita desenhe linhas na palma da mão esquerda": Atualmente esse é o sinal em Língua de Sinais Francesa para “Escritor", mas na época foi então compreendido como "Poeta".
É interessante sabermos que Pélissier era bilíngue Língua de Sinais e Francês escrito, sendo que ele não oralizava. Segundo relatos do seu professor Abée Chazottes, sua voz seria muito “fraca” (QUARTARARO, 2008). Além disso, ele pensava seus poemas primeiramente em Língua de Sinais, sua primeira língua.
Pélissier publica 1844, "Choix de poésies dún sourd-muet/Poemas escolhidos de um surdo-mudo".
Em 1856, após 13 anos de ensinamentos no Instituto, ele publicou sua mais importante obra: "L'Enseignement primaire des sourds-muets mis à la portée de tout le monde, avec une iconographie des signes”, onde podemos visualizar pela primeira vez os sinais da LSF de maneira organizada. Em 21 pranchas (desenhadas por Léopold Levert, um artista ouvinte) ele categoriza as palavras como alimentos, bebidas, animais etc, além de dar destaque aos adjetivos, numerais, verbos, advérbios e preposições.
Na última página do livro, além de enumerar suas obras já publicadas, tomamos conhecimento da existência de uma pesquisa que estava sendo realizada desde 1850, o primeiro dicionário da Língua “Universal” de Sinais (destaque meu, lembrando que naquele momento existia a crença da possibilidade da existência de uma língua que fosse universal, defendida por Berthier) com mais de 20 mil sinais. Na propaganda do futuro lançamento, há um destaque para o fato que as ilustrações serão realizadas por Métivier, surdo. Não foram encontradas referências a esse personagem em nossas pesquisas.
“A publicar quando o número de assinantes o permitir: Dicionário da Língua de Sinais Universal. Com desenhos completos. Elaborada em 1950 como um monumento único e inédito até aos dias de hoje, esta obra, em grande parte pronta, será entregue e conterá cerca de vinte mil figuras, cuidadosamente desenhadas por MÉTIVIER, surdo-mudo. Vimos um exemplar na Exposição Universal de 1855. É possível reservar agora sem pagar nada adiantado.”
UM POETA SURDO NO SÉCULO XIX
Como vimos na publicação anterior, o ensurdecido aos 5 anos de idade Pierre Pélissier, foi o primeiro poeta surdo a ter reconhecimento como tal. Em 1837, em um concurso da Academia de Jogos Florais de Toulouse, seu poema "Mes regrets/Meus arrependimentos" lhe rendeu uma menção honrosa.
Pélissier publica 1844, "Choix de poésies dún sourd-muet/Poemas escolhidos de um surdo-mudo".
Em 2017, a artista plástica surda Sandrine Allier-Guépin lançou um vídeo com ilustrações dela como fundo para o mais famoso poema de Pélissier.
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