sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Medicalização da Surdez - Parte 1

    

    Retomando o texto de Desloges, Observations d’un sourd et muet sur un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets publicado em 1779,  que faz a defesa da língua de sinais,  apontando não só sua excelência linguística mas, também, indicando um caminho culturalista que levaria ao conceito de nação surda, objeto deste estudo, poderíamos concluir que o ambiente político da época era propício a essas reflexões.

    Não exatamente. Havia sim  uma ebulição política e social que culminou com a Revolução Francesa de 1789 e,  as ideias iluministas que se baseiam na razão, liberdade e na ciência propiciaram que as discussões sobre o papel de cada indivíduo na sociedade passassem a ter protagonismo. Mas as transformações verdadeiras tiveram muitos estágios  com avanços e retrocessos convivendo com ideias estabelecidas há séculos.


    Pensando especificamente na questão das pessoas com surdez, não há dúvidas que existe uma questão fisiológica da privação da audição (em diversos níveis) que pode levar a problemas de comunicação. Assim, a área da medicina sempre esteve entremeada nas ações ligadas a essas pessoas. De uma maneira ou de outra, seja com a ajuda de aparelhos auditivos, ou na reabilitação da fala, sempre existiu um desejo de “normalização”.


    Essas questões não interfeririam na construção do conceito de nação surda, já que desde o início de suas reivindicações os surdos se colocavam como “estrangeiros falantes de uma língua”. Mas, a visão médica da surdez traz com ela algumas falácias que durante muito tempo na história foram mantidas: um corpo doente e uma mente doente associados à surdez.


    No artigo publicado “Un sourd-muet centenaire en 1896, qu’a-t-il vu?” publicado em 26 de março de 2121 pelo pesquisador Yann Cantin, apresenta uma dura realidade: 


    “Enquanto procurava por surdos-mudos em jornais antigos, como La Gazette des sourds-muets, l'Abbé de l'Epée etc... me deparei com um artigo no Journal des sourds-muets, de fevereiro de 1896, escrito por Henri Gaillard, então com 29 anos.

É melhor citar o autor, para ver sua emoção: No sábado, 15 de fevereiro, soubemos no Diário que a comuna de Deuil celebraria o centenário de um surdo-mudo no dia seguinte, domingo. Foi realmente uma oportunidade rara. Um surdo-mudo de cem anos raramente é encontrado. Existem surdos-mudos na casa dos oitenta. Nós conhecemos muitos deles. E  além disso, este surdo-mudo de cem anos, aí existente, nos arredores de Paris, é suficiente para demonstrar os escritos infundados de certos médicos que afirmam que a surdo-mudez não permite viver muito tempo ”. (GRIFO MEU)


    "Apenas como registro para discutirmos, nesse mesmo artigo de 1896, o autor se remete a outros dois surdos sobre os quais falaremos quando nos dedicarmos aos BANQUETES SURDOS propriamente ditos. 

Do outro lado, há também surdos-mudos educados, e que se aproximam do centenário: Claude Richardin e Victor-Gomer Chambellan, morreram respectivamente em 1900 e por volta de 1910 aos 90 anos, o primeiro em Nancy e o outro em Paris. Esses nonagenários foram figuras proeminentes em sua época. Claude Richardin permitiu que a escola de Nancy para surdos e mudos se desenvolvesse: seu fundador, Joseph Piroux confiava muito nele!"


    Chambellan foi um dos últimos professores surdos-mudos antes de a profissão ser proibida aos surdos, pela reforma educacional de 1880. Porém, Chambellan, embora esteja relativamente esquecido nos dias de hoje, organizou o Congresso de Paris, em 1889, para lançar uma reflexão e, portanto, fazer um balanço da reforma educacional. E um detalhe interessante, sua profissão de professor permitiu que seu filho se tornasse médico, enquanto ele próprio vem de pais modestos.


    Essas duas pessoas viveram o início do ensino em língua de sinais, vinte anos após a morte do Abbé de l'Epée. E também vivenciaram os primeiros movimentos, ações, reações pela preservação da língua de sinais como meio de instrução. Eles também experimentaram a proibição da língua de sinais nas escolas.”


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