Em um artigo publicado em 1999 na revista da FEDERAÇÃO MUNDIAL DOS SURDOS, (que completa 70 anos de atividade este ano de 2021) a então presidente da organização, Liisa Kauppinen, apresenta e defende de maneira bastante clara a tese de que as pessoas surdas espalhadas pela mundo fazem parte de um grupo sociocultural que compartilha as línguas de sinais da mesma maneira que outras minorias linguísticas.
Escolhi esse texto, muito polêmico na época de sua publicação, quando a onda de reconhecimento legal das línguas de sinais no mundo ainda não tinha iniciado, exatamente para refletirmos sobre como a ideia de uma nação surda foi retomada ao mesmo tempo que a teoria de inclusão de todos na sociedade começa a ser praticada. Assim como aparece no artigo de Kauppinen, as pessoas surdas transitam todo o tempo entre serem classificadas ou não como pessoas com deficiência (terminologia atualmente em uso).
Vamos ler o artigo e refletir sobre essas questões?
OS SURDOS SÃO DEFICIENTES?
A perspectiva da Federação Mundial dos Surdos (World Federation of the Deaf) sobre as pessoas surdas está definida nos estatutos da WFD: “O termo ‘Surdo’ refere-se a qualquer pessoa com perda auditiva, especialmente aquela que faz uso da língua de sinais como sua língua natural.” (Artigo 2, Seção 2); e “Língua de sinais tem sido universalmente aceita com o status de uma língua indígena e a cultura Surda como participante da herança cultural nacional de cada país.”( Artigo 2, Seção 1) (…)
Durante as últimas décadas, pesquisas em sociologia, antropologia cultural, linguística, e outras disciplinas similares têm sido incrementadas e mais informação sobre os Surdos enquanto grupo e individualmente têm sido divulgadas.
Enquanto a linha de pesquisa clínica-patológica perguntava: “O que há de errado com a pessoa Surda? O que está faltando, como essas desordens podem ser reparadas?”, ao mesmo tempo a sociologia e a antropologia cultural estudavam o modo de vida do Surdo, sua cultura, valores, perguntando: “Como a pessoa Surda vive e funciona na sociedade? Como podem os recursos próprios do Surdo serem utilizados?”
Em todos os lugares do mundo os Surdos se reconhecem e se vêem enquanto grupo sociocultural; têm sua língua própria, sua história, valores, costumes, crenças e organizações para interagirem com os outros, ou seja, aqueles que não são Surdos. Estas diferenças de perspectiva têm gerado muitos debates públicos; “O que é isso, vocês são Surdos, e não deficientes? E os deficientes auditivos – são eles os únicos deficientes? Vocês estão simplesmente negando sua deficiência, e isso é um problema psicológico…” e por aí vai.
Estas atitudes são comuns. Na realidade, muitos Surdos não se consideram deficientes. Essa atitude é baseada em suas próprias experiências de vida como pessoa Surda, que é natural. Comparem o exemplos do livro Deaf in America: Voices from a Culture, de Carol Padden e Tom Humphries (reeditado pela Harvard University Press, 1990), que descrevem as experiências de crianças Surdas onde os ouvintes é que são os “deficientes” e não os Surdos.
Por outro lado, alguns Surdos e organizações rejeitam essa visão sociocultural em função de razões políticas e econômicas: se os Surdos não são vistos como incapacitados, perderão todas as oportunidades, benefícios e direitos associados com a deficiência. A Federação Mundial dos Surdos/WFD pode ajudar na discussão deste tópico. De acordo com os pesquisadores, os Surdos preenchem todos os critérios para serem classificados como grupo minoritário, incluindo o aspecto da hereditariedade.
Cadeirantes não dão a luz a bebês cadeirantes; nem a cegueira, nem a deficiência mental são passadas de pais para filhos; mas, grande parte da surdez é hereditária. Pesquisadores têm tentado localizar e erradicar os genes responsáveis pela surdez, mas, até agora, eles já foram detectados em centenas de genes e destruí-los significa mudar a natureza do ser humano dramaticamente.
Portanto, a surdez pode ser encarada como uma parte natural da pessoa, parte da sua diversidade enquanto ser humano. A maior parte dos Surdos sente-se ligada às outras minorias linguísticas. Os usuários de línguas minoritárias são normalmente oprimidos nas escolas, no recebimento de informações e serviços; os problemas daqueles que fazem uso de uma língua minoritária são similares aos problemas dos Surdos que fazem uso da língua de sinais.
Pesquisas também mostram que a proibição do uso da língua de sinais tem consequências fatais no desenvolvimento linguístico e no desenvolvimento em geral da pessoa Surda, o que cria uma desvantagem. Próteses auditivas e a oralização não são suficientes para remover os obstáculos de comunicação para a participação da pessoa Surda sociedade e não garantem oportunidades iguais. A ONU define deficiência em sua relação com o meio ambiente: a deficiência é causada por obstáculos no meio ambiente e pode ser diminuída ou eliminada ao se criarem recursos para superá-las.
Se a língua de sinais é proibida, ou se a interação social, educação, informação e serviços não são disponíveis em língua de sinais, a pessoa Surda não desenvolve seu potencial linguístico e não pode se comunicar. Se os direitos linguísticos da pessoa Surda são implementados e se ela tem seu desenvolvimento linguístico normal, se o uso da língua de sinais é permitido em todos os níveis, se não existem obstáculos à comunicação e participação – então a pessoa Surda é igual. Quando a língua de sinais é usada e o meio ambiente é prazeroso para a pessoa Surda, a deficiência diminui ou desaparece. Então, a pessoa Surda não precisa ser chamada de deficiente.
Os Surdos têm interesses comuns com minorias linguísticas e com movimentos de deficientes que lutam por seus direitos. Juntamente com as minorias linguísticas, lutamos pelos direitos humanos, especialmente aqueles ligados à língua. Para as pessoas portadoras de deficiências, os direitos humanos e a melhoria do meio ambiente também são importantes. Portanto: A pessoa Surda é deficiente quando a ela é negada língua e cultura. A pessoa Surda não é deficiente se seus direitos linguísticos e culturais são respeitados.
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