Pierre Desloges nasce em 1747 em Grand-Pressigny, cidade a pouco menos de 300 quilômetros de Paris. Ensurdecido pela varíola aos 7 anos, seus lábios ficaram tão machucados que ele só conseguia fechá-los com muito esforço ou com a ajuda das mãos, tendo perdido quase todos os dentes. Sua fala se tornou praticamente incompreensível. Ele emudeceu.
Pela descrição de sua sensação auditiva, Desloges tornou-se um surdo severo: “Em primeiro lugar, consigo ouvir a mais de quinze ou vinte passos de distância todos os ruídos um pouco altos, não através dos ouvidos, porque estão completamente bloqueados; mas por uma sensação simples: quando estou em meu quarto, posso distinguir o rolar de uma carruagem do toque de um tambor. (p.11) “Consigo distinguir facilmente o som do violino do da flauta; mas não ouvirei absolutamente nada se não tiver minhas mãos sobre ele." (p.12)
Em 1768, com 21 anos, ele e sua família se mudam para Paris, onde passa a exercer a função de encadernador. Desde sua doença, Desloges não mais frequentou a escola, mas sabia ler e escrever um pouco. Oito anos após sua chegada na capital, em 1776, ele conhece um surdo italiano analfabeto mas falante da Língua de Sinais praticada nas ruas de Paris. Naquela época Desloges utilizava alguns gestos espontâneos mas sem a estrutura gramatical de uma língua. Esse encontro foi uma mudança significativa para aquele homem de inteligência afiada mas que se sentia tolhido pela ausência de possibilidade de comunicação. O impacto que o contato de Desloges com a Língua de Sinais deve ter sido realmente muito forte, pois em apenas três anos, não só ele passa a dominar essa língua, quanto percebe sua importância para a educação dos surdos, e decide participar do processo de discussão teórica que estava sendo travado na época.
Desloges publica seu livro Observations d’un sourd et muet sur un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets em 1779, defendendo o uso da Língua de Sinais na educação de surdos em resposta ao texto do professor ouvinte Abbé Deschamps, Un cours élémentaire d’éducation des sourds et muets, também publicado em 1779 no qual Deschamps propõe a educação oralista dos surdos através da leitura labial. Desloges contou com a revisão do linguista Abbé Alexis Copineau, que o ajudou com a correção ortográfica e de estilo, sendo dele, também um pequeno texto de apresentação no início do texto (AVERTISSEMENT).
Na realidade, a questão da possibilidade de um surdo oralizar estava no cerne das propostas do professor Deschamps e de tantos outros professores ao longo da história da educação de surdos. O que podemos perceber no texto de Desloges é a importância que ele dá à Língua de Sinais enquanto língua “de verdade” e não uma junção de gestos com significados atrelados (ou não) à língua oral, o que, também, é inovador pois só a partir dos anos de 1960, nos Estados Unidos, com as pesquisas do linguista William Stokoe, é que as línguas de sinais começaram a ser reconhecidas como línguas em sua plenitude.
Mas ele também se coloca efetivamente no que chamamos “lugar de fala” proposto pelo movimento de minorias que se iniciou no final do século XX, “Nada sobre nós sem nós”
Outro fato importante é que Desloges nunca foi professor de surdos, nem sequer teve formação profissional nessa área. Não foi aluno de Abbé L´Épée. O que ele apresenta em seu texto é um manifesto político em defesa dos direitos linguísticos dos surdos, claro que defendendo a linha de trabalho desenvolvida por L 'Épée mas com o ponto de vista de uma pessoa surda.
“Sentindo-me como um francês vendo sua língua criticada por um alemão, que soubesse no máximo algumas palavras dela, me senti obrigado a vingar a minha pelas falsas imputações pelas quais este autor é responsável, e ao mesmo tempo justificar o método de Abbé L´Épée, inteiramente baseado no uso de sinais. Também tento dar uma ideia mais precisa do que normalmente se tem, da língua de meus companheiros que são surdos e mudos de nascença, que não sabem ler nem escrever e que nunca receberam outras lições além das do bom senso ou por contato com seus companheiros. Em duas palavras, esse é o propósito do livrinho que vamos ler.” (p. 9)
Nesse parágrafo inicial de apresentação do trabalho, Desloges denomina os surdos como “mes compagnons/meus companheiros” duas vezes. Esse termo será repetido também nas páginas 12, 33 e 34. E, mais importante, se apropria da língua falada por esses companheiros e se sente na obrigação de defendê-la. Já temos aí um dos elementos constitutivos do conceito de nação: fazer parte de um grupo de pessoas que compartilham uma língua em comum.
Um pouco adiante em seu texto, Desloges fala explicitamente sobre o conceito de Nação (p.16) ao apresentar o trabalho desenvolvido por L´Épée : “Este erudito professor se considerava um homem transplantado no meio de uma Nação (maiúscula do autor) estrangeira, da qual queria aprender a sua língua: acreditando que a forma mais segura de o conseguir seria aprender ele próprio a língua do País (maiúscula do autor), para que melhor fossem compreendidas as instruções que desejava dar” . Nesse momento, além do conceito de nação ligado ao conceito de língua, o autor inclui o conceito de país, este tradicionalmente ligado a um lugar (geograficamente falando), talvez por se referir particularmente aos surdos de Paris, ou da França.
O autor, sempre se colocando sob o ponto de vista de quem vive aquela experiência, que poderíamos denominar “cultural”, apresenta sua vivência com o grupo de surdos parisienses. “Então, quando um surdo e mudo, como eu mesmo experimentei (Prefácio página 11), se depara com outros surdos e mudos mais educados do que ele, aprende a combinar e aperfeiçoar seus sinais, que até então eram sem ordem e sem ligação. Ele adquire rapidamente na interação de seus camaradas, a arte difícil de pintar e expressar todos os seus pensamentos, mesmo os mais independentes dos sentidos, por meio de signos naturais, com tanta ordem e precisão como se tivesse conhecimento das regras da gramática. Novamente, eu tenho que acreditar; visto que me encontrei neste caso, e falo apenas de acordo com minha experiência.” (p.20)
Desloges, como já disse anteriormente, não teve acesso à educação formal. Suas observações são, na maioria das vezes, frutos de suas vivências. Assim, ele defende a possibilidade de que aquela Língua de Sinais oferecida por Abée L´Épée aos seus alunos (que ele sabia ser uma língua adaptada aos propósitos educacionais do abade e não verdadeiramente a Língua de Sinais praticada pelos surdos parisienses) poderia se tornar uma língua universal.
Existia, na verdade, entre os pesquisadores da linguagem no século XVIII, a busca pelo que se acreditava ser uma “linguagem universal”, e Desloges se entusiasma com a perspectiva de ser aquela língua adaptada pelo professor L´Épée a solução para essa questão. “Vários cientistas ilustres buscam em vão os elementos de uma linguagem universal que se tornaria o lugar de encontro para todos os povos do universo. Como eles não perceberam que a descoberta estava pronta, que essa linguagem existia naturalmente na língua de sinais e se tratava apenas de aperfeiçoar esta linguagem e nela incluir métodos como l'Abbé de L'Epée tão bem executou.” (p.34 e 35)
Mesmo sem ser um professor de surdos, ou ligado a alguma instituição de educação de surdos, Desloges parece dominar os princípios linguísticos de análise vigentes na época. Certamente o apoio de Abbé Alexis Copineau, que é apontado apenas como revisor ortográfico e de estilo. na realidade, os pontos que Desloges aborda em defesa da língua de sinais enquanto língua de instrução e de formação de pensamento são absolutamente coerentes com um estudo formal. Evidentemente, por ser um texto de debate com o material escrito por Abbé Deschamps, essa tarefa fica facilitada, já que ele apresenta os pontos defendidos pelo seu oponente e faz a defesa da língua de sinais.
Para esse estudo, que foca na construção da ideia de um povo surdo (ou irmandade) que gera a ideia da nação surda, fica o indício bastante claro de que esse desejo político e cultural de união dessas pessoas fora do conceito médico que até então era vigente, se estabelece.
Sobre essa visão “médica” da surdez, que, evidentemente inviabiliza a visão cultural e política do povo surdo, discutiremos adiante.
Parabéns!
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