Entre os organizadores e participantes dos BANQUETES SURDOS, Ferdinand Berthier ( 1803-1886) certamente é o mais importante. Não só por sua atuação política, mas pelo fato de ser o primeiro autor surdo com diversos livros publicados. Ele foi também professor do INJS de Paris, tendo sido aluno da escola sob a direção de Abbé Roch-Ambroise Sicard. Foi também aluno de Roch-Ambroise Auguste Bébian, primeiro autor ouvinte a publicar um estudo sobre a Língua de Sinais. Sobre esses personagens falaremos futuramente.
Nesse seu primeiro livro publicado (em 1836, dois anos após a realização do primeiro BANQUETE SURDO), Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets, Berthier nos dá sua versão da história da educação de “surdos-mudos” como se dizia na época, no mundo. Baseado em textos publicados e estatísticas, percebemos sua preocupação em formalizar academicamente suas afirmações, com o objetivo claro de valorizar a educação dos seus “irmãos”, para os quais, aliás, oferece o trabalho. Outra denominação que pode parecer preconceituosa, mas, na realidade é usada no sentido de comunidade, seria o “compagnons d`infortune” que aparece no trecho abaixo e em mais três ocasiões no texto (p. 9, p. 44 e p.45).
“PARA OS SURDOS DE TODOS OS PAÍSES
Irmãos,
O Instituto Histórico me deu a honra de apresentar uma dissertação sobre a educação de surdos-mudos em todos os momentos e em todos os países. (...) Vários autores trataram da história da educação dos surdos e mudos. (...) Eu não finjo ter feito melhor.
Apeguei-me ao essencial, aos fatos históricos, abandonando todas aquelas teorias vazias que não te ensinam nada(...). Eu me consideraria suficientemente recompensado pelo meu trabalho se ele parecer digno de alguma atenção para homens sérios e, se for lido, principalmente por meus companheiros de infortúnio.” p. 9 (GRIFOS MEUS)
Berthier inicia seu trabalho com uma espécie de revisão sobre a história de educação dos surdos através da história. E o faz de maneira bastante minuciosa, pois, mais de 150 anos depois, quando iniciei meus estudos sobre esse tema, encontrei partes desse levantamento em alguns autores diferentes. Pensando-se no acesso que um pesquisador teria no início do século XIX, realmente é algo a ser destacado.
Quando seu relato chega no trabalho realizado pelo Abée de l'Epée, após mais ou menos 10 páginas de reconstituição histórica, Berthier inicia uma série de elogios àquele que foi chamado como “pai dos surdos”, talvez um elo de ligação para esses “irmãos” que saíram de um lugar sem possibilidade de reconhecimento social para a construção da ideia da nação surda.
“Este grande homem descobriu com seu olhar de águia, na pantomima que ainda não tinha formato estabelecido, as sementes de uma língua ainda mais abundante e mais fecunda que a mais rica e cultivada língua do mundo. Ele afirmou, diante de uma atônita Europa, que a língua falada pelos surdos e mudos é eterna e universal. E disse ainda que a desejada língua onde todos os homens de todas as nações pudessem se comunicar, a língua dos gestos cumpriria esse propósito” (p. 24 tradução minha ).
Durante toda sua vida Berthier defendeu esta “superioridade” da língua de sinais, em meu ponto de vista como uma maneira de colocar os falantes dessas línguas em uma posição destacada em oposição à dura realidade que os surdos experimentavam. Ele cita, por exemplo, um trecho da introdução do livro de L'abbé Sicard (Cours d'instruction d´un sourd-muet, 1880), que as pessoas surdas seriam “um autômato vivo, uma estátua que precisa ser aberta em partes para atingir todos seus sentidos; uma máquina ambulante na qual a organização, em termos de efeitos, é inferior àquela dos animais” (p. 30 tradução minha)
O autor também aproveita o relato que faz sobre a história da educação de surdos para enaltecer os seus pares surdos, de uma certa maneira até mesmo para contrapor algumas das falas de Sicard, como as do parágrafo acima.
“Os mais notáveis alunos surdos do Abée Sicard foram Massieu e Clerc . O nome do primeiro tornou-se famoso além das fronteiras da Europa, mais pelo apoio que lhe deu seu mestre, do que por suas respostas originais, mesmo que às vezes incorretas, pelas quais era aplaudido em exibições públicas. O outro, depois de cumprir com distinção por nove anos em sua função de “repetidor” no Instituto de Surdos de Paris, foi convidado em 1816 para visitar os Estados Unidos e divulgar os tesouros da educação com seus irmãos do Novo Mundo. (p. 37 tradução e grifo meu).
Além de destacar a importância dos surdos franceses, os conecta como IRMÃOS aos norte-americanos.
Mesmo sendo o objeto do presente estudo o levantamento dos indícios textuais produzidos por autores surdos sobre a ideia de uma nação surda, não podemos deixar de observar que este capítulo faz uma retomada histórica sobre a educação de surdos exemplar.
A segunda parte do estudo foca na apresentação de estatísticas relativas à educação dos surdos na Europa e América, em locais onde existiam escolas especiais para surdos. Fica como curiosidade que o Brasil aparece ao lado da Grécia (?) , como “parece que existem poucos surdos-mudos por lá”. (p. 52 , tradução minha).
Para aqueles que têm interesse por dados numéricos sobre a população surda e escolas de surdos, é um trabalho bastante interessante.
Confira o livro Histoire et statistique de l’éducation des sourds-muets e boa leitura!
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