sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Medicalização da Surdez: Parte 2

    Dando continuidade às reflexões sobre a medicalização da surdez em contraponto com a visão culturalista, apresento um trecho de minha tese de doutorado UMA LEITURA DA TRADUÇÃO DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS PARA A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS  (Faculdade de Letras/UFRJ, 2000)   buscando  as origens dessas duas visões de mundo. Lembro que alguns termos utilizados por mim (deficiente e não pessoa com deficiência, por exemplo) eram a norma da época e por isso não fiz alterações no texto.

    Esta parte da minha pesquisa foi embasada na obra de Michel Foucault, especialmente nos livros a seguir:  A arqueologia do saber. As palavras e as coisas. A verdade e as formas jurídicas. História da loucura. Microfisica do poder. O nascimento da clínica. Vigiar e Punir. 


    Ela foi, porém, inspirada no livro La increible y triste historia de la sordera  (1990,   CEPROSORD,  Caracas) de autoria do ex-assessor especial do Ministério da Educação da Venezuela,  o professor uruguaio Carlos Sánchez, que tive a honra de conhecer o durante a realização do II Congresso Latino Americano de Bilinguismo para Surdos, em 1993, no Rio de Janeiro  e rever em Mérida/Venezuela em  1996 no III Congresso  Latino Americano de Bilinguismo para Sordos.


    A seguir o texto, excerto das páginas 32 a 49 do meu trabalho.


O imaginário coletivo e a imagem do surdo


    Falar em direitos dos surdos, ou direitos dos “deficientes auditivos” como ainda se costuma dizer em muitos espaços públicos, remete a maior parte das pessoas a pensar em deficiências em geral. Cegos, aleijados de todo tipo, portadores de deficiências mentais, enfim, alguns dos párias da sociedade. Pessoas que, certamente, têm necessidades especiais e devem receber tratamento especial. Isso em termos teóricos.


    O que acontece no dia-a-dia dessas pessoas se afasta e muito dos bons propósitos que os governos, as instituições e os cidadãos “conscientes e politizados” em geral proclamam. O reconhecimento das necessidades específicas de cada deficiente ainda parece estar muito mais ligado ao tipo de “tratamento” que cada um receberá para poder participar da sociedade mantendo um padrão de normalidade que é ditado pelo bom-senso. O objetivo ainda é, para todos os tipos de “deficiência”, a CURA.


    Quando o deficiente é auditivo, questões básicas que vêm sendo negligenciadas pelos profissionais que com ele trabalham, fazem aumentar em muito as disparidades entre teoria e prática. Como na maioria quase absoluta das vezes o sujeito surdo não apresenta outro tipo de impedimento orgânico ou  cognitivo (em princípio) que não sua falta de audição, há uma oscilação constante  entre a exigência de que ele percorra o trajeto idêntico aos outros ocupantes do seu espaço social (falar, desempenhar suas funções estudantil, social e profissional normalmente, sob pena de ser taxado de pouco inteligente, ou rebelde, ou preguiçoso) ou um tipo de paternalismo que coloca o surdo sempre em alguns degraus abaixo de sua real capacidade.


    No Brasil, por exemplo, onde durante quase um século os surdos foram impedidos em suas escolas especiais de utilizarem a LIBRAS pode-se observar hoje em dia de norte a sul do país uma incrível homogeneidade lingüística que só pode ser explicada pela força intrínseca de uma língua viva.


    Quando se sabe que as línguas de sinais não têm seu registro escrito, que as línguas de sinais são “fala”, o que parece inicialmente incrível torna-se quase mágico. A constatação de que existem grupos de pessoas espalhadas por todos os cantos do planeta que falam essas línguas naturais, o que significa dizer que são grupos culturais, ou micro-comunidades culturais como prefiro, com tradição cultural oral e sem história escrita relatada (ou incipiente) e que são basicamente urbanas, após o estranhamento inicial percebemos a abertura de perspectivas científicas inéditas.


    Essa realidade vem passando por um rápido processo de transformação. A possibilidade de utilização disseminada das gravações em vídeo está alterando drasticamente o comportamento dessas micro-comunidades, que, rapidamente passam a se integrar através de uma rede de comunicação ainda totalmente livre e desorganizada. No Rio de Janeiro, por exemplo, os Surdos mais politicamente atuantes (que circulam em torno da FENEIS) conhecem seus pares suecos,  americanos, japoneses, ingleses, franceses e outros através de fitas de vídeo com depoimentos, histórias, festas, que chegam até eles das maneiras mais distintas.


     Mas, o que fazer com a história perdida, a história esquecida ?

 

    A presente tese pretende contribuir de alguma maneira para o resgate desse passado. Entender o processo histórico que desencadeou na existência de escolas especiais para surdos pode auxiliar no estabelecimento das políticas globais direcionadas à pessoa surda, além de subsidiar os profissionais que com ele trabalham a um melhor entendimento da chamada “questão surda”.


    Não se pode esquecer, porém, que estaremos traçando um trajeto sob o ponto de vista do outro, do ouvinte (o que fica claro quando se percebe que as poucas fontes existentes relatam a história da educação dos surdos, da sua reabilitação para o mundo ouvinte).


    Tarefa impossível seria tentar assumir o papel do surdo. Porém, como essa parte da tese foi pensada e desenvolvida a partir da leitura do texto La increible y triste historia de la sordera do professor Carlos Sánchez, ex-assessor do ministro da educação da Venezuela e que, em 1992, implantou naquele país uma política educacional bilíngüe para surdos (língua de sinais/língua oral), que por sua vez fundamenta sua pesquisa em textos de Michel Foucault, senti-me à vontade para dialogar com esses autores e aprofundar algumas questões.


    Na grande maioria das monografias, dissertações e teses versando sobre a surdez com abordagem culturalista, observa-se a existência de um capítulo dedicado à uma reflexão ou retomada histórica, todas bastante parecidas. Não me furto a apresentar minha pequena e talvez repetitiva versão dos fatos. Acho que  cada pesquisador acrescenta um tijolo na construção desse edifício necessário para que os surdos possam olhar para seu futuro mais confiantes.


    A verdadeira história dos surdos só poderá ser retomada por eles mesmos.


    Serve esse capítulo como incentivo e delineamento de alguns pontos.


    A dúvida vem de longe....

    Aristóteles ( 384-322 a.C.) declara que audição é, de todos os sentidos, o que dá a maior contribuição para o conhecimento, já que o discurso só é compreensível porque a fala é composta por palavras, cada uma delas um símbolo racional. Assim, para ele, um cego seria necessariamente mais “inteligente” que um surdo-mudo (utilizando a terminologia da época).  Lucrécio ( 95-53 a.C.) sentencia “No hay arte possible para instruir al sordo”, colocando uma questão que até hoje permeia as discussões…


    Na bíblia há um relato de um milagre de Jesus que “cura” um surdo e este se põe imediatamente a falar. A palavra para designar surdo e mudo é única “kophoi”. Não existe língua possível para eles.


    Essa imagem da antiguidade persiste ainda hoje no imaginário popular: o surdo-mudo. Como se a manifestação de uma condição fosse inseparável da outra. O senso comum ainda mantém o conceito invariável.

 

    San Juan Beverly, em fins do século VI, relata que ensinou falar um jovem “surdo-mudo”. Mas as poucas menções a qualquer tipo de “aproximação” com os surdos fica por conta de curas milagrosas ou inexplicáveis.


    Em 1198 o papa Inocêncio III autoriza o casamento de um “mudo” ,  argumentando que “apesar de não poder falar, em sinais pode se manifestar”.


    O (re)nascimento das cidades, as viagens colocando povos e culturas em contato parece dar ao surdo sua primeira leitura como grupo lingüístico/cultural. Podemos apontar esse momento como o do “surgimento” das línguas de sinais. A estatística trabalha a favor dos surdos, já que em cada mil habitantes, 15 são surdos de todas as idades. É evidente que a movimentação (lembrando mais uma vez que as línguas de sinais são fala e não têm registro escrito) propiciada pelo novo momento histórico irá beneficiar o encontro dos iguais.  


    É evidente também que eles passam a ser notados. E notados como “diferentes”. Assim como veremos adiante com relação aos loucos, os surdos solitários do feudo eram absorvidos como responsabilidade coletiva, assimilados. Agora eles podem até mesmo incomodar o poder instituído, já que, em grupo, podem parecer estrangeiros (perigosos, maldosos, falsos etc).


    A preocupação com eles leva à necessidade de aproximá-los da “normalidade”. Surge então o primeiro “professor” de surdos da história, o monge espanhol Pedro Ponce de León (1520-1584), da ordem dos beneditinos, a quem se atribui também a invenção do primeiro alfabeto datilológico (alfabeto manual) . Ele ensina a três filhos de nobres a escrita e a fala em grego, latim e italiano. Meadow (1980 in Sánchez:1990 ) diz a esse respeito: “O fato de que os primeiros alunos de Ponce de León eram nobres carece de explicação, já que a fala era um pré-requisito para o reconhecimento dos direitos legais, incluindo o direito de possuir propriedades. Os ricos tinham, então, não só os meios financeiros, mas também a motivação financeira para encontrar mestres para seus filhos.”


    Mas o sucesso do monge, e, é claro, a nova concepção de mundo e de  homem renascentista, traz ganhos reais para os surdos. E por toda Europa começam a aparecer candidatos a essa nova “ciência”: ensinar os surdos a falar.

Quais eram os recursos empregados não importavam. Assim, a comunicação gestual de todo tipo aparecerá como recurso na aquisição da fala.


    O mais antigo texto em língua inglesa que descreve a língua de sinais como um sistema complexo na qual “homens que nascem surdos e mudos(...) podem argumentar e discutir retoricamente através de sinais” é de 1644 - Chirologia, de autoria de J. Bulwer. Para ele, a Língua de Sinais era universal e seus elementos constitutivos “naturais”, o que corresponderia a icônicos. O mesmo Bulwer publica em 1648 Philocophus, dedicado aos irmãos surdos Edward e William Gostwick, barões. Nesse texto é afirmado que um surdo pode expressar-se perfeitamente através dos sinais como o faria um ouvinte em sua língua oral. (Woll,1987:12)


    Em 1775 uma data marcante: a fundação do Instituto de Surdos e Mudos de Paris, onde o abade l’Epée (1712-1789) desenvolve a descrição da Língua de Sinais utilizada pelos Surdos de Paris, produzindo uma espécie de “dicionário” língua francesa/língua de sinais. Seu trabalho educacional com essa língua de sinais, desenvolvido desde 1760 até sua morte, será conhecido e  difundido por todo o mundo como o “método manual” ou “francês”.


    Há uma mudança radical na metodologia de ensino que vigora no renascimento, já que os alunos de l’Epée aprendiam a língua escrita e a língua de sinais, deixando a oralização de lado. Outro ponto importante do trabalho do abade é que seus antigos alunos foram se tornando professores, trazendo uma mudança de comportamento inédita na comunidade surda.


    “Nas décadas seguintes à divulgação dos trabalhos de l’Epée, e, em virtude da adoção  de sua metodologia em inúmeros locais, os surdos de toda uma geração, não só em França, mas também na Rússia, Escandinávia, Espanha, Itália e Estados Unidos, puderam destacar se e ocupar postos de importância na sociedade de seu tempo, coisa que de nenhuma maneira poderiam alcançar sem a educação que receberam, na falta da qual permaneceriam limitados às tarefas mais baixas ou a mendigar pelas ruas.” (Sánchez, 1990:51 citando Stokoe:1978).


    Sánchez ( p.53/54) lembra que as concepções de L’Epée não escaparam, apesar do ineditismo da proposta, dos preconceitos próprios de sua época, e que não poderia ter sido de outra maneira. O abade acreditava que a língua de sinais que usavam os surdos era incompleta, devendo ser melhorada e universalizada. Com essa finalidade introduziu o que ele denominou de “signos metódicos”, que representavam as palavras da língua francesa que no entender o abade não existiam na codificação gestual, tais como preposições e artigos, entre outras. Em suas aulas utilizava sistematicamente os sinais naturais da língua de sinais completados com alguns signos de sua invenção, e as frases eram estruturadas segundo a sintaxe do francês.

    

    Apesar disso o abade entrou para a brevíssima história relatada dos surdos como herói. Em um livro americano escrito por dois surdos encontramos que persiste até mesmo uma lenda apontando L’Epée como “inventor” das línguas de sinais.

    

    Com a fundação, em 1790 da escola “gestualista” de Viena, poderíamos afirmar a existência de uma forte corrente de valorização das línguas de sinais na educação de surdos.


    Há, porém, um movimento que segue por outros caminhos. Com origem reconhecida na Alemanha, a filosofia que se denomina Oralismo difundia o “método germânico”. Para seus teóricos, um dos problemas da educação dos  surdos estava exatamente no uso da comunicação gestual e na existência de escolas residenciais especiais para surdos, que potencializavam o problema. Interessante observar que até hoje a Alemanha continua sendo o mais importante país que mantém a filosofia Oralista como política educacional para seus surdos.


    Mesmo seguindo rumos opostos, documentos demonstram a existência de um diálogo entre os teóricos das duas filosofias: Samuel Heinicke (1729-1784), autodidata e militar germânico, ferrenho defensor do Oralismo, corresponde-se com o abade L’Epée.


    Jacobo Pereira (1715-1790 para Sánchez e 1780 para a tradutora Magnólia Costa Santos), português que realiza a maior parte do seu trabalho na França e premiado pela Academia Francesa de Ciências em 1749 (apresentando o caso de Azy d’Etavigny, um aristocrata por ele educado), citado por Sánchez como Oralista, aparece na Carta sobre surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam (1749) de Diderot (1713-1784) como seu consultor sobre a língua de sinais.


    No início do século XIX os não resolvidos problemas educacionais dos surdos, que não deixaram de existir com as escolas gestualistas, sofrem uma forte influência dessa filosofia “otimista”, o Oralismo, e mesmo na França muitas crianças surdas acabam realocadas em escolas regulares. Segundo Sánchez (p. 66) a experiência fracassa, já que por todos os lados surgem protestos de pais e professores de ouvintes, temendo uma “contaminação” . Fracassada ou não, a experiência desemboca no Congresso de Milão (1880), que reúne professores de surdos e decide expurgar da educação dos seus pupilos a língua de sinais. Esse pensamento dominará a educação de surdos por quase cem anos,  trazendo para as comunidades surdas prejuízos enormes. Sob o ponto de vista educacional nenhum avanço foi obtido, já que a “normalização” do surdo, ou a exigência de que ele fale, de que ele faça leitura labial, de que ele se comporte como um ouvinte, não advém de decretos. As questões discutidas hoje em dia pelos educadores oralistas são absolutamente as mesmas que as de dois séculos atrás. Sob o ponto de vista cultural, a proibição do uso da língua de sinais no espaço escolar repercutiu profundamente nos grupos organizados de surdos, gerando seu enfraquecimento.


    Em 1960, quando nos Estados Unidos o lingüista William Stokoe publica seu trabalho provando serem as línguas de sinais línguas naturais com todas suas propriedades, inicia-se um repensar sobre a questão da surdez, que dará origem à filosofia da Comunicação Total e posteriormente ao Bilingüismo, essa última entendendo a questão surda como lingüístico/cultural. O surdo passa a ser encarado como minoria bilíngüe e bicultural e todas as propostas educacionais, culturais, sociais partem dessa hipótese, construindo uma nova visão . Mas o caminho para se chegar a isso foi longo, como veremos


    Surdos, loucos, estrangeiros: os insanos


    “Mas que diferença se deve estabelecer entre a estupidez e as enfermidades congênitas dos sentidos? Tratando a demência como uma perturbação do juízo e a estupidez como uma deficiência da sensação, não se está correndo o risco de confundir um cego ou um surdo-mudo com um imbecil?”


    Nota de Foucault no pé da mesma página: “Durante muito tempo, na prática, se considerará a imbecilidade como uma mistura de loucura e enfermidade sensorial. Uma ordem de 11 de abril de 1779 prescreve à Superiora da Saltêtrière que receba Marie Fichet, conforme relatórios assinados pelos médicos e cirurgiões ‘que constatam que a dita Fichet nasceu surda-muda e demente’”. (Foucault: 1989, p.260)


    Os loucos de todo o tipo sempre existiram. Se na Idade Média eles foram vistos como responsabilidade de seu feudo, contribuindo com suas insanidades (brincadeiras, ataques de loucura e outras manifestações eram vistos como espetáculo, de certa forma) para o dia-a-dia dos encerrados entre muralhas, a Renascença e sua mobilidade começa a não entender/absorver os mendigos, os preguiçosos, os desempregados irados.


    A Nau dos Loucos, “estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos.” (Foucault:1989, p. 9) certamente não era apenas uma figura literária.


    Os loucos iam sendo escorraçados de lá para cá até finalmente serem trancafiados em prisões em alguma cidade mais “compreensiva”.


    “A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão fértil entre duas terras que não lhe podem pertencer.” ( p. 9)


    O louco, em seu processo de expulsão do feudo torna-se inicialmente estrangeiro. Ele não é o doente que contagia como os leprosos. Para aqueles já havia a solução. A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os  leprosários multiplicam-se pela Europa. Segundo Mathieu Paris, chegaram a haver 19.000 delas em toda Cristandade (Foucault:1989, p. 3).


    Segundo Foucault, com o final das cruzadas e a conseqüente ruptura dos focos orientais de infecção e também como resultado espontâneo da segregação dos leprosos, a partir do século XV a terrível doença chega a uma quase erradicação.


    Escasseiam os leprosos e deixam os seus locais de segregação vazios, permanecendo as estruturas físicas e a idéia da exclusão como “saneadora”. “Freqüentemente nos mesmo locais, os jogos de exclusão são retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde.


    Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que a salvação se espera para eles e para aqueles que os excluem” (p. 6).


    Chegam inicialmente os atingidos pelas doenças venéreas, mas não assumem no mundo clássico o papel que cabia à lepra no interior da cultura medieval. Nos hospitais eles se misturam aos outros doentes. Há uma cura para eles. Sua passagem pela segregação é breve.


    Já o louco, que ainda nem ao menos é reconhecido como tal, demora um pouco mais para ser “medicalizado”...

 

    A “Grande Internação” poderia ter como data-início o édito real de Luís XIV de 27 de abril de 1656 que criava o Hospital Geral. A princípio a instituição deveria impedir a “mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens”. É o ápice de medidas que começaram a ser tomadas em 1532 quando o parlamento de Paris manda prender todos os mendigos para fazê-los  trabalhar nos esgotos da cidade amarrados, dois a dois, por correntes. “Trata-se de recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária. É preciso também zelar pela subsistência daqueles que não puderam encontrar seu lugar ali, mas que poderiam ou mereciam estar ali.” (Foucault:1989, 49)


    O internamento está intrinsecamente relacionado à questão do trabalho. Quando há emprego e altos salários essa população servirá para dar mão-de-obra barata; em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas. “Não nos esqueçamos que as primeiras casas de internamento surgem na Inglaterra nas regiões mais industrializadas do país: Worcester, Norwich, Bristol; que o primeiro Hospital Geral foi aberto em Lyon, quarenta anos antes de Paris...” (p. 67)


    O Hospital Geral (na França) passa a ser um braço do rei que, através da sua existência, reúne em um só local a polícia e a justiça. Segundo Foucault seria a terceira ordem de repressão. Não há uma idéia médica por trás do Hospital Geral, ele é uma instância da ordem.


    “A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a pintura de Bosh perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão(...) Não mais existe a barca, porém o hospital” .( p. 42)


    Podemos observar, então, segundo Foucault, dois tipos de instituição disciplinares nos séculos XVII e XVIII. A instituição fechada, estabelecida à margem, que isola o mal, suspende o tempo. Do outro lado o panoptismo, que  tenta fazer o exercício do poder de forma mais leve, mais sutil, “um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir” (Foucault:1972,184). Há uma multiplicação desse tipo de instituição na época, ocupando cada vez menos um lugar marginal. O que era uma medida circunstancial passa a ser modelo geral. Desde os exércitos até os hospitais, passando, é claro, pelas escolas e os locais de trabalho, aos poucos todas as instituições se inserem nesse movimento.


    Se antes o papel de uma instituição disciplinar era apenas “neutralizar os perigos, fixar as populações inúteis ou agitadas, evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas; agora se lhes atribui (pois se tornaram capazes disso) o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos indivíduos.(...) Quando no século XVII se desenvolveram as escolas de província ou escolas cristãs elementares, as justificações dadas era principalmente negativas: os pobres, não tendo recursos para educar os filhos, deixavam-nos ‘na ignorância de suas obrigações, e entregues ao simples cuidado de viver; e tendo eles mesmo sido mal educados, não podem comunicar uma boa educação que jamais tiveram’; o que acarreta três inconvenientes ponderáveis: a ignorância de Deus, a preguiça (com todo seu cortejo de bebedeira, de impureza, de furtos, de banditismo) e a formação dessas tropas de mendigos, sempre prontos a provocar desordens públicas e que só servem para esgotar os fundos do Hôtel-Dieu”. (Foucault: 1972, 185)


    “Uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia. De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas. Bentam se maravilhava de que as instituições panópticas pudessem ser tão leves: fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas; basta que as separações sejam nítidas e as aberturas bem distribuídas. O peso das velhas “casas de segurança”, com sua arquitetura de fortaleza, é substituído pela geometria simples e econômica de uma “casa de certeza”.(p. 178/79)


    Em meados do século XVIII pode-se perceber uma mudança nos trâmites da justiça. É uma época de inúmeros projetos e reformas. O crime passa a ser repensado e são redigidos os códigos “modernos”: na Rússia em 1769, na Prússia em 1780, na França em 1791, apenas como exemplos. A confissão pública dos crimes foi abolida na França em 1791 pela primeira vez, depois novamente em 1830 (com um pequeno período de restabelecimento), o pelourinho foi supresso em 1789. Na Inglaterra o instrumento de punição desapareceu em 

1837.

    “Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos que abriram, por volta de 1760, o período que ainda não se encerrou - é simples, quase evidente.


    Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma... Porém julgavam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos.”

(Foucault:1972, p. 20/21)


     O autor cita N.H. Julius, em um livro de 1831 (p. 384-386), “Leçons sur les prisons”, tradução francesa, falando sobre o panoptismo. Dizia ele que o princípio arquitetural da proposta era superado por ser um acontecimento na história do espírito humano. Mais do que uma solução técnica, o que estava em trâmite era a construção de um tipo de sociedade. Enquanto a antiguidade foi a civilização do espetáculo (templos, teatros, circos), por “tornar acessível a uma multidão de homens a inspeção de um pequeno número de objetos”, a idade moderna não tem a vida pública e a comunidade como elementos principais. Julius via nossa sociedade como de vigilância, já que cada vez mais o Estado passa a interferir na vida de cada cidadão.


    Foucault vê mais além, associando o panoptismo à própria mitologia da personagem napoleônica, aquele que descortina tudo com um só olhar, mas a que nenhum detalhe, por ínfimo que seja, escapa jamais (p.190).


    Seja através do internamento tradicional ou da instituição panóptica, a  prática da exclusão dos diferentes de todo o tipo floresce na Europa até o final do século XVIII, só iniciando um processo de refluxo a partir daí, aparecendo de forma mais sutil .


    Em 25 de agosto de 1793, Philippe Pinel foi nomeado, por decreto, médico dos alienados de Bicêtre. Teórico da “liberdade para os loucos” e inventor da camisa de força…


    “A que liberdade se refere Pinel? O louco passa do cárcere ao manicômio, e as cadeias e os castigos serão substituídos pela camisa de força, o eletrochoque, e mais tarde pela lobotomia e os tranqüilizantes. A submissão do louco se justifica agora em razão da sua condição de enfermo, e passa do âmbito policial ao âmbito da medicina. Se acaba de produzir a medicalização da loucura”.( Foucault: 1989, 58).


    E para o surdo a situação não será diferente. Quando, nos últimos anos do século XVIII dá-se o “nascimento” da medicina moderna, com seu “furor classificatório”, com um médico todo-poderoso e cientificamente comprovado, mandam-se os loucos para os asilos, os criminosos para as cadeias, os doentes para os hospitais e os surdos para escolas internas apropriadas para sua “recuperação”.


    A modernidade chega. O século XIX é marcado pelo desenvolvimento da tecnologia em todos os setores da atividade humana. A medicina incorpora aos seus conhecimentos as descobertas. Para Sánchez essa incorporação “resolveu” a questão ideológica anterior ao conhecimento científico: se existe um doente, existe uma doença e deverá existir uma cura. 


    Assim, o surdo deve falar, já que ele pode (enquanto possibilidade teórica) falar. Os descobrimentos da eletroacústica  que permitiram o desenvolvimento das primeiras próteses auditivas, por exemplo, foram de grande auxílio para aqueles surdos parciais ou pós-lingüísticos. Por outro lado, o fato de alguns conseguirem chegar à pseudonormalidade desejada pela ideologia, alijou a grande massa restante do processo, de uma certa maneira

novamente os aproximando dos idiotas, dos loucos. Exatamente aqui o círculo se fecha.


    Se o discurso do poder afirma que o surdo pode falar, entender (até mesmo ouvir, acredita-se, quando protetizado), participar do processo social sem grandes dificuldades, todos os que não conseguem “chegar lá” são a representação do fracasso.


    Uma breve análise da história relatada da educação de surdos em treze países (que realizei para a dissertação de mestrado, ver Ramos: 1985) demonstra a pertinência do paralelo traçado pelo professor Carlos Sánchez entre loucura e surdez. A questão da normalidade é o ponto de partida para todas as experiências educacionais realizadas até hoje. Oscilando entre “eles são iguais ao normal” e “eles são muito diferentes”, na verdade o objetivo final de todas abordagens até hoje é a adequação da população surda ao padrão considerado normal.


    Alguns ganhos aqui e ali, individualmente, apenas aparecem como confirmadores da regra que apresentamos.”



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